Estou a começar a escrever este texto no período natalício, no último dia de 2022, annus horribilis, marcado, antes de mais, por uma guerra no coração da Europa, iniciada já há mais de dez meses. Esta guerra, desencadeada ao arrepio do direito internacional e contra os princípios fundamentais da coexistência entre Estados soberanos, representa um retrocesso civilizacional. Os destinos de milhões de pessoas à escala mundial foram subitamente ameaçados pelo voluntarismo e as ambições imperiais de um líder autocrático, inebriado pela sua hubris incontida. Os horrores da guerra de que os ucranianos são directamente as principais vítimas, atingem, por extensão, todas as esferas da comunidade mundial, de súbito confrontada com desafios globais relativos à sua própria segurança, devido, principalmente, às ameaças da Rússia de utilização de armas nucleares e, também, aos novos movimentos migratórios, à fome, e às crises energéticas e ambientais.
Nesta espécie de pesadelo distópico em que agora vivemos, de retrocesso dos processos de globalização e de reforço das forças centrífugas de regionalização e mesmo de exacerbação dos nacionalismos, crescem os movimentos e os partidos anti-sistema, que ameaçam a democracia e a cooperação entre os Estados. O mundo está a fragmentar-se, mas, por outro lado, surgem novas alianças regionais, por vezes entre países que não possuem fronteiras comuns. A velha ordem mundial parece atravessar uma crise, mas o futuro não se antevê claro, perante a coexistência de fenómenos e de processos de sentidos divergentes, à escala local, regional, global e pós-global .
Segundo o historiador Yuval Noah Harari, o significado da palavra paz alterou-se durante o final do século XX e o início do século XXI . A “velha paz” significava a temporária ausência de guerra, ao passo que a “nova paz” passou a significar a improbabilidade de guerra. Coloca-se agora a questão de saber quando e como cessará a interrupção deste novo ciclo e se retomará o caminho da “nova paz”.
Internamente, o ano termina com mais um episódio revelador da descoordenação e do desgaste do governo que ameaça desagregar-se com a sucessão de “casos e de casinhos” e as demissões de ministros e de secretários de estado. O mais surpreendente e decepcionante é, todavia, apesar da inesperada e sólida maioria em que se apoia, a sua incapacidade em ultrapassar o horizonte rotineiro da gestão conjuntural e implementar as mudanças estruturais necessárias para conduzir o país para patamares mais elevados de desenvolvimento económico e social.
No decurso do ano que agora finda reapareceu o velho fantasma da inflação, que atingiu um valor máximo, desde há trinta anos. As previsões do Conselho Europeu apontam para uma inflação de 8%, em 2022, e de 5,8%, em 2023. Os salários e as pensões também subiram, mas a um nível inferior ao do aumento dos preços e, assim, a maior parte da população perdeu, na realidade, poder de compra. O novo ano inicia-se com um aumento generalizado dos preços e, em termos globais, o futuro próximo não se perspectiva muito auspicioso para a grande maioria da população portuguesa.
O Natal é considerado pela maior parte das pessoas, em várias latitudes do globo, a melhor época do ano. Tempo de amor, de afecto, de partilha, de reunião familiar, durante a qual se estabelece uma espécie de armistício nos conflitos, zangas e desavença e se instaura entre as pessoas, durante um curto período, um sentimento de aproximação e de convivialidade.
A época natalícia é também um tempo de excessos, não apenas ao nível alimentar mas também no que diz respeito aos gastos em compras, quer de vestuário e de objectos considerados úteis para o lar, quer de artigos diversos destinados a ofertas de natureza variada. Período de grande azáfama, de “correria” a vários locais, sobretudo a centros comerciais, empunhando a lista de compras, para que nada falte, havendo, no entanto, quase sempre, para muitos, a necessidade de empreender uma investida de última hora para aquisição “daquele” objecto que ainda falta. Época de consumismo incontrolado, por vezes ostentatório e ilustrativo de falta de pudor, “ofensivo”, enquadrável no tipologia estabelecida pelo economista Thorstein Veblen, já há mais de um século, na obra The Theory of Leisure Class.
De forma mais ou menos exagerada, com mais prodigalidade ou mais contenção, somos, quase todos nós, arrastados por este vórtice, pelo turbilhão mercantilista inescapável, que consome não apenas as nossas energias mas também um bom quinhão das poupanças que, porventura, tenhamos conseguido amealhar.
Há cerca de um século, o antropólogo francês Marcel Mauss, sobrinho de Durkheim, na sua obra mais conhecida, Essai sur le don, mostrou que a troca não mercantil que se realizava entre tribos arcaicas constituía um princípio fundamental da vida em sociedade. A cerimónia do potlach, praticada por tribos indígenas da América do Norte, representava uma luta de prestígio de tipo agonístico. A festa reunia várias tribos para a troca de presentes – ofertas que implicavam reciprocidade – culminando o processo na destruição de riquezas. Com o potlach estabelecia-se uma hierarquia entre os grupos e os seus representantes. O mais forte era o que fazia a oferta mais valiosa. A cerimónia servia, também, ao mesmo tempo, para estabelecer alianças matrimoniais, num ciclo de prestações recíprocas.
O estudo de Mauss, efectuado já há várias décadas, junto de sociedades arcaicas, ilustrativo do chamado fenómeno social total, pode ser,,com as necessárias adaptações, devido às diferenças contextuais – de actores e de sistema social – transposto para a realidade das sociedades contemporâneas As trocas de presentes que hoje se efectuam, sobretudo durante o período natalício, também são ilustrativas do fenómeno social total. Embora nem todas as trocas assumam necessariamente o cunho de lutas de poder e de prestígio, inserem-se, também, numa rede de relações hierárquicas e estatutárias. As similitudes também se podem observar ao nível da destruição de riquezas: ela também existe, nas sociedades modernas, escondida, camuflada, sob a forma de esbanjamento e de desperdício.
As principais características típicas da época natalícia estão presentes no decurso de todo o ano. O sistema capitalista e a sociedade de consumo não param, continuam incessantemente o seu movimento, embora de uma forma um pouco menos acelerada. Num certo sentido há sempre Natal: o Natal constitui apenas o apogeu de um processo contínuo e imparável que impulsiona as sociedades modernas.
Ao desenvolver as ideias de Max Weber sobre o processo de racionalização, característico da mudança da sociedade tradicional para a moderna, George Ritzer, autor da clássica obra The McDonaldization of Society, considera que essa dinâmica se tem acelerado, sobretudo na América do Norte e na Europa Ocidental. Os processos operativos característicos da rede de fast-food McDonalds aplicam-se, agora, a cada vez mais sectores da sociedade americana e expandem-se para o resto do mundo. Reconhecendo a sua dívida para com Max Weber, Ritzer observa que, paradoxalmente, os sistemas racionais originam efeitos perversos e irracionalidades. A irracionalidade que, em última análise, se instala no modelo McDonalds produz um efeito desumanizante, tanto sobre os empregados como sobre os clientes .
Na esteira de Weber e da sua alusão à “gaiola de ferro”, Ritzer considera que, apesar de o modelo Mc Donalds ter assumido um estatuto de ícone como empreendimento muito eficiente e lucrativo, de transmissor da racionalidade instrumental e de elemento central de uma cultura global homogeneizada, apresenta múltiplas vulnerabilidades e é passível de muitas críticas. A tese de Ritzer continua a ser aplicada e actualizada em investigações realizadas em várias áreas, nomeadamente no campo da educação.
Há quem considere que estamos, desde o início do século, no alvorecer de uma nova revolução – a quarta – baseada no incremento do processo de digitalização e na combinação de múltiplas tecnologias, conduzindo a mudanças de paradigma sem precedentes, na economia, nas empresas, na sociedade e nos indivíduos. Esta nova revolução terá, segundo Klauss Schwab, Presidente Executivo do Fórum Económico Mundial, um impacto sistémico, envolvendo a transformação de sistemas inteiros entre e dentro de países e na sociedade como um todo. Caracteriza-se por uma Internet muito mais móvel e omnipresente, por sensores mais pequenos e mais potentes, pela Inteligência Artificial e pela aprendizagem automática. Implica, além disso, uma mudança de paradigma na forma como trabalhamos e comunicamos e, também, como nos expressamos, nos informamos e nos divertimos.
Enquanto aguardamos por este maravilhoso Novo Mundo e pelos benefícios que as mudanças que se anunciam nos possam propiciar, a vida continua o seu curso normal e prosseguem as habituais rotinas do nosso quotidiano. Nestes últimos tempos enfrentámos a Covid 19, os efeitos da guerra, a inflação, várias intempéries e a crise governativa. Entre ventos e marés conseguimos sobreviver, cada um de nós munido do seu PRR!
Fluctuat nec mergitur!