As penas judiciais são uma boa forma de ver o que irrita cada comunidade. Quando a Arábia Saudita pune com centenas de chibatadas um blogger crítico, percebemos que nas areias arábicas não se valoriza excessivamente a liberdade de expressão. Se em alguns estados sulistas dos Estados Unidos se condenavam professores que ensinavam Darwin, além de agradecermos o soberbo filme Inherit the Wind com Spencer Tracy, também concluímos que por aqueles lados não têm um inexcedível apreço pelas teorias científicas.

Felizmente retratei realidades obscurantistas. Nós, numa democracia liberal no século XXI, temos um panorama totalmente diferente. Por cá punimos bem, com penas pesadas de prisão, os atos mais hediondos que o ser humano é capaz.

Uma tentativa de homicídio com requintes de malvadez? Uma violação repetida de uma criança? Nada disso. Infinitamente pior. Pense mais na linha do Holocausto. O civilizado Portugal pune com penas pesadas os crimes fiscais.

Os maiores malandros portugueses não são os maridos e namorados que batem nas mulheres e namoradas, ou os violadores (de mulheres adultas e de menores). Nem sequer aqueles azarados (na verdade merecedores de compaixão por não serem bem-sucedidos nos seus inteiramente justificáveis intentos) que são os homicidas que, no fim de tantos trabalhos, não conseguiram assassinar os alvos. Estes grupos de boa gente recebem usualmente penas suspensas.

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De facto, entre 2014 e 2016, 75% (setenta-e-cinco-por-cento) das condenações por abuso sexual de menores foram penas suspensas. Nos condenados por tentativa de homicídio, em 2016, 41 tiveram pena suspensa e 84 pena de prisão efetiva. Para a violência doméstica, no mesmo ano, 1390 foram condenados a pena suspensa e apenas 95 a pena efetiva. Tudo isto vindo de um relatório do Ministério da Justiça. Para as violações de mulheres adultas não tenho dados semelhantes, mas segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2017 houve 53 detidos pelo crime de violação para 408 participações (menos de 13%). Tendo havido, em 2011, 90 condenações para 374 participações, podemos especular que cerca de metade dos violadores condenados viram a pena suspensa e ficaram em liberdade.

O último caso ocorreu há pouco. Um professor de xadrez de Braga que teve atos sexuais de relevo com uma aluna de dez anos durante um ano foi condenado a pena suspensa. Os atos foram graves, afirma o juiz, mas foi a primeira vez e presume-se que só à segunda vítima de abusos é que conta.

Mas, felizmente, se para estes crimes que, em boa verdade, só afligem os fracos as penas são leves e tantas vezes suspensas, já com os desfalques ao estado os juízes são mais ferozes. Neste caso, por exemplo, temos penas de prisão efetiva para várias pessoas, incluindo dois condenados a dez anos de prisão efetiva, para crimes de fraude fiscal.

Qualquer pessoa com neurónios funcionais concordará que um crime violento contra uma pessoa (que só as florzinhas de estufa presumem levar a minudências como traumas debilitantes) é consideravelmente menos grave que privar o estado de uns tostões para distribuir pelas clientelas dos partidos. De resto, esta é uma visão partilhada por todos na Assembleia da República. Foi o anterior governo PSD-CDS – e a geringonça claro que manteve a moldura penal – que agravou as penas para os crimes fiscais. Vangloriavam-se até do número elevado (170) de penas de prisão para este tipo de crimes.

Claro que há pessoas com apego pouco saudável a direitos como o da integridade física ou à autodeterminação sexual. E nos casos de violação de mulheres, toda a gente sabe que as mulheres são umas mentirosas (boa parte da direita asseverou isto mesmo quando explodiu o movimento MeToo), e o que é que querem se saem à noite e usam minissaia? Já as crianças não votam, enquanto que as famílias dos abusadores sim, votam, quem é que os legisladores e juízes hão de escolher? E que picuinhas leva a mal que alguém o tente sufocar até à morte? Pura pieguice.

Essas pessoas sensíveis – que infelizmente incluem a coordenadora do Observatório da Justiça e até juízes – podem considerar iníquo que atentados aos direitos das pessoas sejam encarados com maior leveza que uma lesão patrimonial ao estado. Mas são rústicos que não entendem que as pessoas valem pouco e só enquanto sustentadoras do estado. Esquivarem-se ao papel de contribuintes é, sim, o crime supremo.

Também não vale a pena sugerir penas longas de serviço à comunidade para os sentenciados por crimes violentos, em vez de pena suspensa. Bem poderiam limpar jardins e matas, por exemplo, mas isso daria tanto trabalho a organizar que as vítimas dos crimes não valem a maçada.

Menos ainda pensem, ó amores perfeitos, referir que é urgente que juízes se especializem em julgar crimes violentos (para entenderem o que têm à frente), que percebam os danos que uma absolvição ou pena suspensa causa às vítimas – é uma traição da comunidade –, e que cabe ao legislador garantir a boa formação e uma avaliação exigente à atuação dos juízes (não, o CSM atual não chega). E nunca ousem imputar ao legislador preocupação exclusiva com os crimes fiscais.

Para finalizar deixo-vos aqui extratos de um lindo acórdão, que determinou pena suspensa (que mais?) para sequestro com violação, o que se desconsiderou no esforço de manter o crime como sequestro simples. Podem ver como, e muito bem, Manuel Braz, da Relação do Porto, num acórdão por unanimidade escreve sobre uma violação. Demos graças por termos tribunais superiores em Portugal que percebem que se uma mulher não morre nem fica paraplégica é porque uma violação não lhe causa grande dano. Se o violador/sequestrador se tivesse esquivado ao IRS é que seria vilania inaceitável. Divirtam-se.

‘Com efeito, a violação, envolveu um acto de cópula e outro de coito anal, ocorridos no interior de um automóvel, sem violência particularmente grave. O arguido limitou-se a intimidar a ofendida […]para além de, fazendo uso moderado da força física, ir vencendo as pequenas resistências que ela, não obstante a ameaça, foi opondo […] É verdade que a ofendida, regressada a casa só conseguiu adormecer por volta das 7 horas, mas não se apurou por que razão, não se podendo, sem mais, concluir que isso se deveu a um “sofrimento físico ou psicológico agudo”. […]
Deve ainda dizer-se que o facto de a ofendida, antes de abandonar o lugar onde ficou livre do arguido, ter anotado a matrícula do automóvel daquele, pela presença de espírito que revela, é pouco compatível com um grande abalo psicológico.
E quanto a sofrimento físico provou-se apenas que o arguido ao introduzir o seu pénis no ânus da ofendida provocou a esta dores, que a levaram a gritar. Mas essas dores, mesmo que tenham sido intensas, o que nem está provado, foram pouco mais que instantâneas e não queridas pelo arguido [que fofo], pois, ao verificar que com a introdução do pénis no ânus da ofendida lhe causava dores, logo pôs termo a esse ato, retomando a cópula. [Um cavalheiro.]

(Negritos e comentários meus.)