Uma das características do nosso debate público é, com frequência, a sua esquizofrenia. Ou, se preferirmos, a total ausência de preocupação com a defesa de posições que sejam coerentes e consistentes. Pode-se defender qualquer coisa e o seu contrário sem que isso, aparentemente, incomode quem quer que seja.
Por exemplo: é fácil, é barato e dá milhões atacar a Comissão Europeia por querer mandar em Portugal e no nosso Orçamento – fazemo-lo às segundas, quartas e sextas. Ainda agora boa parte do país se dedicou a essa tarefa, com empenho, denoto e acusações de falta de patriotismo aos demais.
Mas também é fácil, barato e dá milhões atacar a Europa por “ceder”, por não se impor, por permitir mais flexibilidade, sobretudo se isso acontecer com um “grande”, como agora se diz que viu com o Reino Unido, a quem o Conselho Europeu concedeu a possibilidade de não aplicar algumas das políticas decididas em Bruxelas. É o que acontece às terças, quintas e sábados.
Aos domingos… logo se vê.
Tal como os interruptores, que umas vezes estão para cima e outras para baixo, não falta quem num dia proteste com o nível de integração europeu, que transferiu para “a Europa” competências que eram do nosso Parlamento e, logo a seguir, se revolte por esse mesmo nível de integração europeu ser insuficiente e a Europa não mostrar para connosco a “solidariedade” de que nos julgamos credores. Num dia falam de soberania e democracia, no outro de “espírito europeu”, sem porventura se aperceberem que estão a ter indignações contraditórias.
É certo que há quem seja coerente. Francisco Assis e Paulo Rangel, apesar de pertencerem a partidos diferentes, defendem ambos mais integração, “mais Europa”, e por isso não contestam o poder que a Comissão tem para nos dar ordens em matéria de política orçamental. Tal como outros, no polo oposto, não aceitam essa “autoridade de Bruxelas” e, por isso, não hesitam em defender que saiamos do euro. É o caso do PCP e de alguns economistas, como João Ferreira do Amaral.
No meu caso devo dizer que estou à vontade – mesmo não concordando nem com uns, nem com outros. Na altura certa – Junho de 2010, ainda Sócrates era e seria primeiro-ministro – insurgi-me contra a ideia de dar a Bruxelas poderes de veto sobre os nossos orçamentos. Chamei mesmo à criação do “semestre europeu” — num texto intitulado A loucura suicidária de “mais Europa” — “um golpe de Estado anti-democrático” que “humilhará os parlamentos nacionais”. O facto de agora ter estado de acordo com as reservas que a Comissão Europeia colocou ao primeiro esboço de orçamento apresentado por António Costa, e de acompanhar a Moody’s quando esta defende que, apesar de tudo, a versão final que acaba de ser votada na Assembleia é menos má do que o projecto inicial, não mudo de ideias. Isto é, continuo a pensar que dar à Comissão Europeia poder de veto sobre o principal instrumento de acção política de qualquer governo, para mais fazendo-o antes de os Parlamentos nacionais se terem sequer pronunciado, é um entorse à democracia e uma violação da soberania nacional que vai além daquela de que Portugal voluntariamente abdicou ao assinar o Tratado de Lisboa.
É por pensar assim que estou contente por David Cameron ter conseguido arrancar dos seus parceiros europeus as pequenas cedências que levou de volta para Londres, tentando com elas evitar que os britânicos votem pela saída do Reino Unido da União Europeia. Gosto especialmente daquele ponto em que se afirma que o caminho da Europa não é obrigatoriamente o da “ever closer union”, isto é, o de uma integração cada vez maior. Mais: não me interessa discutir se o Reino Unido tem ou não razão quando procura limitar os abusos de alguns imigrantes que, vindos de outros países da comunidade, procuram beneficiar do seu generoso “Welfare State” sem contribuir para ele. O que valorizo é o Reino Unido ter conseguido reconquistar poderes que havia perdido, levando-os de volta para Westminster.
Nestas alturas gosto sempre de recordar o que Tony Benn, um histórico deputado trabalhista, e logo da ala mais à esquerda, que em 1991 (há 25 anos!) fez um notável discurso quando anunciou que votaria contra o Tratado de Maastricht. Dirigindo-se aos seus constituintes do círculo eleitoral de Chesterfield, disse-lhes que, “no futuro, serão governados por pessoas que não elegeram e que não poderão demitir. Peço-vos desculpa por isso. Pode ser que essas pessoas vos dêem melhores creches e um horário de trabalho mais reduzido, mas vocês nunca se poderão ver livres delas”.
“Vocês nunca se poderão ver livres delas”: eis uma profecia que, muitos tratados depois, com todas as suas cedências de soberania, parecia inelutável. Mas talvez não, depois do que Cameron conseguiu, o que para já é válido pelo menos para os britânicos. Mas se estes votarem pela permanência na União, como espero que votem, então o precedente agora aberto pode revelar-se da maior importância. Primeiro porque mostra que, ao contrário do mito, a Europa não tem fatalmente de ser uma bicicleta, sempre a pedalar em frente, antes pode evoluir para uma associação voluntária de nações onde não o destino não fatalmente a “ever close union”, pois também se pode fazer marcha-atrás.
Depois, porque as cedências ao Reino Unido abrem a porta a uma ideia de Europa menos uniforme, mais “a la carte”, logo mais capaz de permitir que os eleitorados de cada um dos países façam as suas escolhas e não tenham de seguir sempre a cartilha de Bruxelas.
Tudo isto é anátema para os que sonham com uma qualquer forma de federalismo ou de super-Estado. Tudo isto também é muito mais difícil de alcançar por todos os países que abdicaram de ter moeda própria, ou seja, pelos países do euro, como Portugal. Estes estão como que agrilhoados a regras que são e serão draconianas, pois deram um passo maior do que as suas pernas – sobretudo as pernas dos países periféricos.
É assim que chegamos à esquizofrenia que referi atrás, pois no fundo o que muitos parecem desejar, com destaque para os políticos populistas, é manterem a sua capacidade de satisfazerem as suas clientelas – chamando a isso soberania – e, ao mesmo tempo, assegurarem que alguém paga os seus excessos – o que classificam sendo um dever de solidariedade coerente com o “espírito europeu”. Ou seja, querem mais “soberania” para eles, os que gastam, e menos “soberania” para os outros, os que pagam a factura. É por isso que num dia protestam contra o excesso de autoridade da Comissão Europeu e no dia seguinte lamentam a liberalidade do Conselho Europeu.
Esta esquizofrenia – que no fundo não passa de oportunismo – tende a obscurecer o debate pois não permite ver que, mais do que os humores de Merkel ou de Draghi, o que determinará o nosso futuro é a escolha entre uma Europa mais integrada – a tal “ever close union” – e, por isso, cada vez mais centralizada e com decisões cruciais a serem tomadas bem longe dos parlamentos nacionais, ou uma Europa que, tirando partido do seu imenso mercado interno, permita geometrias variáveis, tal como avanços e recuos, mas mais democrática porque mais dependente da vontade de cada eleitorado e de cada parlamento.
Eu prefiro o segundo caminho, e por isso estou grato a David Cameron por ter criado um precedente que fará história. Sobretudo se o Reino Unido, mantendo-se dentro da União, não permitir que se esqueçam os compromissos agora assumidos e defenda que outros também possam obtê-los. Se o fizer, será mais tarde ou mais cedo um aliado de que necessitaremos. Mais: se o fizer é bem capaz de ter criado a válvula de escape capaz de permitir que, no caldeirão em que a UE se tornou, a pressão diminua, o populismo regrida, os cidadãos sintam que têm de novo o seu destino nas suas próprias mãos e políticos a quem pedir contas sem que eles se desculpem com Bruxelas.
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