Certamente que a saída da Inglaterra da União Europeia, da qual nunca fez plenamente parte e onde passou mais tempo a criticar do que a ajudar a construir, causará instabilidade no mundo inteiro. Se era isso que Cameron se arriscava a causar a fim de tentar resolver as divisões com a direita do partido Conservador e as pressões crescentes de um partido fascistoide encoberto atrás da altivez histórica do antiga «dona do mundo», como o UKIP (12% da votação nas últimas legislativas britânicas), então conseguiu-o plenamente, mas a Inglaterra será a primeira a pagar a factura dessa instabilidade.
Com efeito, a vitória marginal do «Brexit» é tudo menos a solução para a extrema complexidade da evolução política à escala global. Esta há muito que deixou de se pautar pela grande divisão entre democracias e ditaduras, bem como pelo conflito entre países desenvolvidos e sub-desenvolvidos. O globo fragmentou-se em blocos mutáveis conforme as estratégias conjunturais, desde a crise financeira mundial à queda do petróleo e sem ficar por aí. O «Brexit» não passa assim de um problema mais a acrescentar a todos os outros que já estavam apontados na agenda. Só para citar os que estão para vir já a seguir: a eleição de hoje (domingo 27) em Espanha e as votações para a Presidência e a Câmara de Representantes nos Estados Unidos em Novembro!
Todos esses momentos de cristalização de um movimento geral de pulverização política em curso, bem como todas as decisões que os diferentes órgãos da UE hão-de tomar, reproduzem o processo já identificado por Hanspeter Kriesi e os seus colegas, a saber, o aumento das clivagens partidárias sob a pressão da globalização no sentido da integração versus demarcação entre países e regiões, mas também entre «ganhadores» e «perdedores» da dita globalização dentro de cada país e da UE.
Mais importante todavia do que um modelo teórico para dar conta de movimentos partidários convulsivos, como é tipicamente este mergulho do «Brexit» no abismo da confrontação política, como já sucedera sem solução na Grécia e se arrisca a continuar em Espanha este domingo sem mais pernas para andar do que a Grécia ou a nossa «geringonça»; mais decisivo, dizia eu, do que um modelo teórico é verificar, empiricamente, o tipo de clivagem que se estabeleceu no conjunto do Reino Unido ao dividir-se, ameaçadoramente, entre duas metades virtualmente iguais.
Do que li, só o artigo intuitivo de Henrique Raposo no «Expresso» e o ponderado texto do embaixador Seixas da Costa aqui no «Observador» fugiram aos fantasmas soberanistas para analisar aquilo que de facto se passou quando as elites mais conservadoras, alheias ao lugar que a Inglaterra tem hoje no mundo globalizado, deram as mãos aos grupos trabalhistas afectados pela globalização económica, a fim de fugirem ambos do mundo real de uma globalização sócio-cultural que nada irá deter, como é óbvio.
Ora bem, o que sucedeu foi, para começar, a fragmentação territorial não só entre dois estados como a Escócia e a Irlanda do Norte, e o resto de um reino cada vez mais parecido com o do shakespereano Ricardo III, reabrindo o processo de independência da Escócia e, mais grave porventura, a guerra que dura há séculos entre católicos e protestantes na Irlanda. A seguir, rasgando de modo radical o campo das cidades e, em particular, da urbe mais cosmopolita do mundo, Londres e «arredores» como Oxford e Cambridge, este estúpido referendo votou esses polos de dinheiro, inteligência e cultura, como não há outros porventura num espaço tão concentrado, a um destino incerto (eu conheço pessoalmente pessoas que já abandonaram Oxford por causa da xenofobia inglesa)!
Mais: o referendo arrumou de um lado as pessoas mais velhas, onde se misturam os pensionistas temerosos que moram nas pequenas localidades da velha Inglaterra e os desempregados das indústrias não competitivas; bem como as pessoas menos instruídas, que votaram maciçamente pelo «Brexit», fossem simpatizantes trabalhistas, conservadores ou mesmo simpatizantes do Sr. Farage; e do outro lado, as pessoas com menos de 50 anos e mais escolarizadas, residentes em Londres e na maioria das grandes cidades, com profissões terciárias frequentemente globalizadas e mais bem pagas. Em suma, o que este referendo fez foi ditar a sorte ingrata que espera as novas gerações, contra a clara vontade dos mais jovens, que por causa do soberanismo dos pais ficarão fora da Europa nas próximas décadas. É um crime de lesa-futuro como raramente se viu!
Para terminar: o índice de Gini das desigualdades económicas britânico é semelhante ao de Portugal (na ordem dos 0.34), pior que na Alemanha e na França (ambas abaixo de 0,30), mas melhor que nos Estados Unidos (cerca de 0.40). Ora bem, para mostrar a perversidade do referendo, cujos resultados foram inevitavelmente conformes ao modelo da fragmentação populista de Kriesi sob o efeito de um pretenso identitarismo, dividiram a população na chamada «curva em U», com os mais pobres e os mais ricos em cada uma das «pontas» mais identitaristas, as quais, juntas, venceram por uma unha negra o «centro» europeísta. Bom proveito lhes faça: não quiseram pagar o bilhete de entrada na UE, onde tinham todos os privilégios, mas irão descobrir que já não há «Commonwealth» para onde fugir da globalização…