Nasceu em 1902, publicada pelos jesuítas do Colégio de S. Fiel, como revista de Botânica e Ciências Naturais, para funcionar como manual de aprendizagem. Embora tenha começado como revista de sala de aula, para ajudar os alunos a compreenderem melhor aquilo que estavam a estudar, evoluiu de tal forma que se tornou uma marca de referência intelectual, científica, humanista e ética. Agora, passados 118 anos, a Brotéria deixa de ser apenas uma revista para se converter num centro cultural.

Digo ‘apenas uma revista’, mas digo mal porque há muito tempo que a Brotéria passou a Associação Cultural e Científica, com uma rica biblioteca constituída por cerca de 150.000 monografias e 980 publicações particularmente valiosas nas áreas da Teologia, da Filosofia, da História, da Cultura e das Humanidades.

Tudo isto vai agora vai funcionar no belíssimo e muito cinematográfico espaço recuperado do Palácio Marquês de Tomar, no Chiado (onde já foi a Hemeroteca), entre o Bairro Alto e o Largo da Misericórdia, naquilo que é considerado o Conjunto de S. Roque. E tudo isto decorre de um protocolo de colaboração assinado entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Província Portuguesa da Companhia de Jesus e a Associação Brotéria.

Expostos os factos e enunciados os antecedentes para percebermos melhor o ‘who’s who’ deste novo centro cultural, vale a pena determo-nos na vocação do núcleo que está a ser oferecido à cidade de Lisboa e abre as suas portas nesta semana. Aliás, o programa da inauguração anuncia três dias de portas abertas para que as pessoas se sintam convidadas a entrar e a conhecer as instalações, mas acima de tudo a viver o espírito do encontro.

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‘Casa Aberta’, eis o conceito do centro Brotéria que vem sublinhado no convite de inauguração e é o lema de todos os que trabalham ou se voluntariaram para que aquele sítio se torne realmente um lugar onde as pessoas se sintam em casa. Não se trata simplesmente de acolher visitantes para exposições e conferências, fóruns ou atividades culturais e lúdicas, mas de abrir as portas de casa a quem chega numa atitude de encontro, diz Francisco Mota, jovem padre jesuíta e diretor do centro Brotéria.

É interessante a localização estratégica deste novo ponto de encontro, pois o facto de estar no coração de Lisboa, no centro histórico, e conjugar as entradas e saídas do Bairro Alto com o terreiro em frente da Igreja de São Roque, onde também se cruzam diariamente centenas, milhares de pessoas (entre visitantes, turistas, alfacinhas e gente que vem à cidade trabalhar), ficando equidistante entre o Chiado e o miradouro de São Pedro de Alcântara, faz com que seja um verdadeiro ponto de encontro.

Durante o dia e a noite, todos os dias e todas as noites, o movimento é perpétuo nas ruas direitas e perpendiculares ao Palácio Marquês de Tomar, e as legiões de pessoas que por ali se cruzam terão, a partir de agora, uma nova casa na Brotéria, com grandes portas de entrada. Para quê? Perguntarão os mais céticos entre os céticos, que acham que tudo nos faz mais falta que um novo centro cultural.

“A vocação da Brotéria é estar próxima da realidade das pessoas que moram ou atravessam a cidade. Queremos fazer parte da vida das pessoas, do seu modo de viver, da sua cultura urbana. A nossa missão passa por estarmos atentos àquilo que a realidade nos pede” disse-me o diretor quando lá fui ver o espaço já com sinais de vésperas de festa.

E é por querer estar rente às pessoas, às suas necessidades, inquietações e anseios, que a Brotéria começa por debater as grandes questões ligadas ao trabalho contemporâneo. “Trabalhar em 2020: Uberização do trabalho à luz da realidade portuguesa” é o tema da primeira mesa redonda que conta com Paulo Pereira da Silva, Ana Carrilho e Manuel Cardoso, outro jovem jesuíta que atualmente vive entre Lisboa e Paris. Parece promissor discutir o tema a partir do conceito ‘uber’ e de tudo o que ele implica em termos de precaridade, mobilidade, exigência, flexibilidade, imediatismo e gestão de expectativas dos trabalhadores vs expectativas dos clientes.

Nestes três dias de casa aberta haverá encontros fabulosos e até talvez improváveis. Na sexta-feira, à hora do almoço será possível tomar um café com Domenico Lancelotti, cantor, compositor e produtor musical que fundou a Orquestra Imperial. Ao fim da tarde o cenário será radicalmente diferente e o foco serão as mulheres, a tradição e a cidade, com a participação de Carlos Quevedo, Maria Luísa Ribeiro Ferreira e Francisco Mota. Haverá um brinde com palavras do padre jesuíta António Júlio Trigueiros, reitor de São Roque e diretor da revista Brotéria, seguido de uma sessão de fados cantados por Rodrigo Rebelo de Andrade.

No sábado, a manhã começa às 11h e estará por conta de Vasco Pinto de Magalhães e creio que o espaço não chegará para albergar todos os que o seguem e se mobilizam para o ouvir sempre que dá conferências. O encerro das festas, depois de uma tarde de visitas à exposição na Galeria, estará a cargo do DJ Bill Onair e também isso revela a vocação eclética do centro Brotéria, bem como a sua missão de proximidade com o homem da rua, com as pessoas que passam ou moram nas ruas e bairros da cidade.

A partir da inauguração, o Palácio Marquês de Tomar será a sede onde será feita a revista Brotéria, publicada pelos jesuítas desde 1902, como escrevi no início, mas será também uma galeria de arte, uma biblioteca, um arquivo, uma livraria, um café (com pátio ao ar livre onde há uma fonte de pedra e um limoeiro carregado de limões) e um espaço polivalente para debates em conferências e fóruns, mas também para workshops, formações e sessões que sirvam todos os públicos.

“Queremos tirar o máximo partido da localização estratégica, do centro Brotéria e queremos que seja um espaço onde a fé cristã se encontra com todas as culturas urbanas contemporâneas” insiste Francisco Mota. E nesta sua insistência e propósito leio a insistência dos Papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco, nos seus apelos para que a fé seja vivida em conversação permanente com a cultura, numa atualização concreta no quotidiano e numa adaptação constante à vida real.

Em Nova Iorque e Londres, para dar apenas dois exemplos de apostas ganhas em termos de encontro entre fé e cultura, o movimento Catholic Underground tem feito muito por esta nova forma de estar da igreja, encontrando espaços onde milhares de jovens e menos jovens se juntam para conversar, rezar, adorar ou contemplar em silêncio, mas também para ouvir música, para expor todo o tipo de artes visuais, ouvir poesia, ver dança, cinema, teatro e outras artes performativas. De certa forma e à nossa escala, o centro Brotéria, situado no Bairro Alto, será o primeiro centro que tanto abre as portas às pessoas do dia como às da noite. E isso é muito bom.