Se o jovem francês que teve o desplante de dizer “Ça va, Manu?” ao presidente da República francesa pretendia, por este meio, saltar para a fama mundial, há que reconhecer que o conseguiu. Com efeito, um pouco por toda a parte, comentou-se essa sua interpelação ao chefe de Estado gaulês, bem como a resposta que Emmanuel Macron lhe deu na hora, chamando a atenção para a indelicadeza do tratamento informal com que a ele se dirigira publicamente, durante um acto oficial.

Houve também, como era de esperar, comentários para todos os gostos. Desde os que saíram em defesa do coitadinho do adolescente imberbe, que nem sequer queria ofender o susceptível Macron, até aos que elogiaram a atitude de Estado do presidente, ao mesmo tempo que condenaram, sem compaixão, o mal-educado fedelho. Talvez se possam conciliar estas duas posições extremas, evitando juízos condenatórios dos protagonistas, bem como qualquer apreciação sobre as suas intenções. Se o miúdo estava mesmo a provocar o presidente, ou foi simplesmente mal-educado, talvez por ignorância, só o próprio pode esclarecer. Se Macron ficou mesmo zangado e a sua resposta foi mais emotiva do que racional, é também uma suposição que ninguém, salvo o próprio, pode confirmar ou desmentir.

Em tempos idos, os papas saíam em cortejo na sede gestatória, com a tripla coroa, ou tiara, a capa magna e outros atributos da magnificência pontifícia. Mas, ao formar-se o cortejo do papa recém-eleito, era da praxe que uma pessoa se dirigisse ao pontífice e lhe recordasse que ele era apenas um homem. Ou seja, aquela manifestação de esplendor não era destinada à pessoa que, naquele momento, exercia a suprema função eclesial, mas ao seu cargo e ao que este representava. O papa, pessoalmente, pode ser, como geralmente é, um santo ou, mais excepcionalmente, um pecador, mas enquanto vigário de Cristo, merece toda a reverência dos fiéis católicos e não só, muito embora talvez alguns cristãos sejam mais santos do único que é, em termos protocolares, o Santo Padre e, por isso, tratado por Sua Santidade.

Era desejável que muito do fausto papal de outrora fosse abolido, porque a função do papa é ministerial, ou seja, valha a redundância, de serviço: não em vão é o servo dos servos de Deus. Pessoalmente, o papa está obrigado a viver a pobreza e a humildade do Mestre, que não veio ao mundo para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela salvação dos homens. Mas, quem quer que seja o romano pontífice, está obrigado a receber as homenagens devidas à sua condição, tal como Cristo, não obstante a oposição dos fariseus, se deixou aclamar na sua entrada triunfal em Jerusalém. Se alguém não quer aguentar o enorme peso institucional da função pontifícia, ou meramente episcopal, a tal não é obrigado: eleito, ou nomeado, pode sempre, livremente, recusar essa distinção. Mas, aceite o cargo, tem de aceitar também a correspondente carga.

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O Professor Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto cidadão, é livre de fazer o que muito bem lhe apetecer mas, enquanto chefe de Estado, o seu modo de estar tem de ser sempre consentâneo com a gravidade da sua função e estatuto. Não é presidente da República apenas quando desempenha funções oficiais, nem exclusivamente durante o horário de expediente e, por isso mesmo, goza das prerrogativas que são próprias do seu cargo durante as 24 horas do dia. Se é permanentemente chefe de Estado, é como tal que se espera que se comporte sempre e como tal se dê ao respeito e seja respeitado. Pode ser, como realmente é, mais comunicativo e expansivo do que o seu antecessor no cargo, mas não pode ser, nem parecer, mais um comentador político ou desportivo, ou mais uma vedeta mediática, porque uma tal atitude seria decerto desonrosa para a sua pessoa, para o seu cargo e, em última instância, para Portugal.

Note-se que a gravidade institucional nem sequer se extingue, por assim dizer, com o cessar das funções oficiais. Há já alguns anos, um ex-primeiro-ministro português, Pedro Santana Lopes, abandonou um programa de televisão em que estava a ser entrevistado, porque interromperam a emissão para noticiar a chegada de um treinador de futebol português, de fama internacional. Foi, a meu ver, uma atitude de grande dignidade pessoal e institucional: não era apenas a sua pessoa que tinha sido ofendida, mas também a respeitabilidade da função que exercera e que, como é óbvio, obriga a que também os ex-titulares de cargos governativos sejam respeitados, nomeadamente pela comunicação social.

É sempre com agrado que leio as crónicas de João Miguel Tavares, com quem aliás já tive o gosto de apresentar um livro. Nem sempre, contudo, concordo com as suas opiniões que, por vezes, mais do que liberais são libertárias e muito politicamente correctas, nomeadamente no que respeita às mal-ditas causas fracturantes. Em relação a este episódio, expressou uma posição que também é a minha, mas com uma argumentação que não subscrevo.

Com efeito, se por um lado João Miguel Tavares concordou com a reacção do presidente Macron, com a qual também me identifico, por outro afirmou que “existe uma enorme diferença entre ‘respeito’ e ‘respeitinho’ e entre ‘irreverência’ e ‘insolência’”, para depois concluir: “Dinamitar o respeitinho e cultivar a irreverência é uma forma de cada um exercer a sua liberdade individual de uma forma tão lata quanto possível, recusando pactuar com o silenciamento de ideias ou com os argumentos de autoridade” (Público, 26-6-2018). Mas não explica, em concreto, como se distingue a boa irreverência da insolência má. Por exemplo, se um miúdo chama parvo ao pai, ao professor, ao padre, ao primeiro-ministro ou ao presidente da República – para citar apenas designações que começam pela mesma letra – é irreverente ou insolente?! Na realidade, é simultaneamente irreverente e insolente mas, segundo a bizantina distinção do dito cronista, esse comportamento tanto poderia ser uma ofensa intolerável, como uma louvável irreverência; uma atitude a censurar ou, pelo contrário, um gesto a aplaudir!

A verdade é que ‘respeito’, ‘respeitinho’ e ‘reverência’ são a mesma coisa, como ‘insolência’, ‘irreverência’ e ‘má-educação’ são também sinónimos. A distinção, salvo melhor opinião, não deve ser estabelecida entre o respeito e o respeitinho, ou entre a irreverência e a insolência, mas entre a crítica às ideias e as ofensas às pessoas, quer consideradas individualmente, quer colectivamente, enquanto fazem parte de uma raça, povo ou religião. É aceitável que alguém discorde da doutrina e praxe católica em relação ao preservativo, mas é abjecto caricaturar o papa com esse objecto. É razoável que a todos seja reconhecida a liberdade de ter um pensamento próprio e de o exprimir livremente, mas a ninguém se deve permitir a calúnia, nem a difamação, porque são formas gratuitas e indignas de ofensa pessoal. Liberdade de pensamento e de expressão, sempre; irreverência e insolência, nunca!