Eminência:

Faz por estes dias 80 anos que, na Igreja de S. Julião em Setúbal, fui batizada pelo meu tio-avô, o padre da família. Entrei assim, aos 24 dias de vida, na Igreja que, desde sempre me habituei a evocar como una, santa, católica, apostólica, romana e que, familiarmente, sempre tratei por santa madre. Assim, mais de perto ou mais de longe, aos altos e baixos, ao sabor dos dias e dos anos, fui caminhando a par e a passo com esta mãe protetora e conselheira que sempre entendi e me atendeu com evangélica paciência, generosidade e apreço. Da história dela vivi, como se calcula, largos tempos e muitos momentos marcantes. Conheci por isso a Igreja que teve em Pio XII um verdadeiro príncipe, de estatura e de postura ; em João XXIII a surpreendente abertura conciliar – o Vaticano II e os seus desafios – ; em Paulo VI, o artífice atribulado de uma Igreja que se queria renovada, em acolhimento e resposta; em João Paulo I, o sonho fugaz duma Igreja de, e para os pobres e os simples ; em João Paulo II, o brilho duma presença globalizada e uma devoção universal; em Bento XVI, o teólogo eminentemente atento aos alicerces e à tradição ; em Francisco, o corajoso apóstolo das verdades difíceis e dos comportamentos transparentes. E, descendo rápido na hierarquia, uma outra lista mais modesta de padres de aldeia e párocos de cidade, que construíram a imagem múltipla dos crentes-servidores-ministros que cuidavam, a seu jeito e devoção da(s) seara(s) e da(s) vinha(s) do Senhor. Entre papa e padres, num desfile nutrido com algumas eminências mais ou menos “pardas” e outros tantos exemplos de dedicação e crença, ficavam[-me] os bispos. Conferia-lhes a dignidade que o direito de orientação espiritual lhes outorgava e que a humanidade do seu coração e da sua natureza mos aproximava, não tanto como exemplo, mas enquanto fiéis testemunhas e fiadores confiáveis. Uma confiança que sempre se intercambiava à luz de um olhar harmonizador e conselheiro. Tudo no silêncio dos justos.

E agora, Eminência, chegou-nos o terramoto, o desluzir de toda esta envolvência credibilizadora e promovente. O amparo esfumou-se, desertou, fugiu ou ficou sufocado sob as pedras do linchamento. Estalou a patine e a verdade abriu-se, nua e crua. Vítimas aos milhares, socorro tardio ou nulo, prevaricadores pré-absolvidos e encapotados, enquanto os guardiões do Templo, os nossos bispos, se descobrem como capciosos encobridores agora publicamente surpreendidos e denunciados. O respeito institucional desapareceu e a Igreja, nos seus recônditos mais íntimos, foi invadida, exposta e justiçada, pelos justos motivos, pelas razões mais primeiras. É assim a lei da praça pública é este o preço da Verdade verdadeira!

E, Eminência, é este o retrato. Não adianta polir a imagem, puxar dos bons princípios e dos largos créditos de ações meritórias, desenvolvidas através dos tempos em todos os palcos trágicos ou carentes do Mundo. Deixámos que a semente do Mal medrasse no nosso seio e não respeitámos os direitos mais sagrados dos nossos semelhantes mais desmuniciados e fracos. A Igreja adulterou o princípio ativo da sua supremacia e transformou-o em aguilhão do pecado e em mancha do descrédito. Em termos bíblicos, caímos em todas as estações da Via Sacra e temos por isso que converter este calvário em caminho de reparação e penitência. Aqui, o povo de Deus prova, nesta hora, nesta Quaresma, o verdadeiro sabor das trevas. Sente na alma a necessidade de uma purificação e o anseio de uma palavra de comunhão e incentivo.

Eminência: É aqui e é agora que mais precisamos de si. Venho exercer aquela que é a minha versão pessoal do exercício do meu direito de obediência e fraternidade que me liga a si e pedir-lhe que, com urgência e fervor, se assuma enquanto fator e fautor de uma revisão sincera dos itinerários passados para um ressurgimento seguro e limpo. Com os seus irmãos bispos, em colaboração e discussão fraterna. Com os peritos e especialistas, crentes ou não, com todos e todas que com o seu saber e sabedoria, alarguem os vossos conhecimentos e os vossos meios de ação. Quebrem cadeias. Peçam ajuda. Atentem em que, nesta como noutras questões sensíveis, o vosso mundo do pecado e do perdão, se cruza com o mundo real do crime e do castigo, num ponto fulcral em que tão mal está quem o Mal faz, como quem o deixa fazer ou, dele sabendo ou supondo, o não impede e o esconde. É uma responsabilidade maior a que tendes para com as vítimas para além de buscar o seu perdão: procurá-las, atendê-las, confortá-las, indemnizá-las (SIM!), recuperá-las para a vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A Igreja, Eminência, é, como muito bem sabeis, um universo multifacetado, em que a Fé toma várias expressões e se enraíza conforme a envolvência civilizacional e humana lhe permite ou a inspira. Mas, em todas as situações e circunstâncias, ela é o primeiro arauto e braço defensor dos direitos humanos, universais e, em si mesmos, primeiros. Logo, o sinistro momento que atravessamos não se elide com um só perdão: são dois os perdões necessários – para os culpados e para Igreja ela própria enquanto responsável pela proteção das vítimas que descurou e pelo silêncio que patrocinou ou impôs relativamente a tão grave atropelo dos direitos fundamentais dos seus próprios fiéis, nos inocentes primórdios da sua fidelidade espiritual. Com os abusadores somos, Igreja, todos culpados, mas, consideradas as reações – tão frouxas, atabalhoadas e até absurdamente   desconformes com as próprias diretivas do Vaticano – de alguns dos vossos confrades, sentimo-nos nós, leigos-em-serviço, de algum modo abusados também…

Estamos na barca, no olho da tempestade, Eminência. Sede nosso piloto: acordai o Mestre! Tende a coragem de enfrentar a procela e de mobilizar os mareantes. Ensinai-nos a oração dos arrependidos e dos crentes na salvação. Cantai o hino da Esperança e apontai-nos a praia bonançosa a que havemos de aportar se soubermos confiar e porfiar no caminho da purificação e do resgate. Ouvi as vozes laicas e juntai-as às vossas preces e decisões. Porque ninguém se salva sozinho, e a “voz do Povo é a Voz de Deus” quando cai em ouvidos esclarecidos e benevolentes. E a voz da Igreja tem de ser, no seu todo, convicta e concordante, no essencial do seu pensamento como da sua ação. Vem aí o Papa, Eminência. Com que cara o recebereis? E que palavras lhe direis…!?

E por aqui me fico.  Se alguma vez, algum dia, neste Mundo de Cristo ou sabe Deus onde, quando, por acaso ou porque sim, nos cruzarmos, do coração espero poder saudar-vos na mais pura Alegria do Encontro.

Lisboa, 16 de março de 2023