Para quem faz planos com alguma antecedência, o passado fim de semana seria o último antes do ‘Brexit’ (inicialmente previsto para 29 de Março). Em parte por esse motivo, escolhi esta data para uma visita ao Churchill Archives Centre, no Churchill College, Cambridge, para a qual tinha sido convidado em Novembro do ano passado. Escrevo agora, passado este fim de semana, e não faço a menor ideia sobre quando terá lugar o ‘Brexit’. Mas foi uma grande experiência, em qualquer caso.
Cheguei ao Churchill College na passada quarta-feira à noite. Tudo estava tranquilo e devidamente preparado, como previsto. No “Porter’s Lodge”, a senhora que me deu a chave do quarto e o mapa do colégio, amavelmente acrescentou: “Dizem-me que vai para o Oxford & Cambridge em Pall Mall, Londres, no sábado. Devo aconselhar que viaje cedo porque haverá uma manifestação nessa rua ao meio-dia”.
Não fazia ideia de que ia haver uma manifestação no sábado — anti-Brexit, de facto, soube mais tarde, porque a senhora não disse qual era o sinal político da manifestação. Ela apenas me aconselhou a viajar cedo. Nessa mesma noite, quando cheguei ao meu quarto no Churchill College, vi uma mensagem do Oxford & Cambridge Club de Londres avisando sobre essa mesma manifestação e sobre “road closure”. Comecei a pensar que era um assunto sério — e que a minha escolha de fim de semana talvez não tivesse sido a mais sábia.
No dia seguinte, quinta-feira, passei o dia tranquilamente, consultando o Churchill Archive. À noite, jantei na High Table, por amável convite do meu anfitrião, Allen Packwood, o jovem director do Churchill Archives Centre. Observei com prazer que todos usávamos gravata (ou, nalguns casos, laço), ao contrário do que pudera observar durante o dia no Colégio — onde todos, exceptuando os funcionários, pareciam fazer gala em usar trajes andrajosos e barba por fazer.
Durante a High-Table, as boas-maneiras britânicas foram observadas. Pude conjecturar que todos os “locals” eram contra o “Brexit”, mas ninguém disse isso claramente. Houve uma ameaça de conversa sobre o tema, mas foi rapidamente suspensa. “Não é apropriado discutir política na High Table”, disse um dos Fellows mais idosos.
No fim do jantar, a caminho da outra sala onde é servido vinho do Porto, o Fellow acima referido aproximou-se de mim cordialmente e disse-me: “Soube que vai no sábado para Londres e para Pall Mall. Desculpe a intromissão, mas sugiro que vá cedo e que não use bow-tie, nem ande com o Telegraph na mão. Eu sou um ‘Remainer’, mas lamento ter de o avisar de que alguns ‘Remainers’ podem ser extremistas e podem ver na sua bow-tie e no Telegraph um sinal Tory”. Agradeci enfaticamente. Ambos, em seguida, apreciámos conjuntamente excelentes variedades de Porto.
Passei a sexta-feira de novo embrenhado no Churchill Archive. No sábado, pus-me a caminho, de Cambridge para Londres, de acordo com os avisos recebidos: fui de madrugada, e sem bow-tie. O comboio estava de facto bastante cheio, mas foi pontual. E cheguei ao Clube em Pall Mall por volta das 10h da madrugada. Tudo estava tranquilo e fui informado de que poderia andar na rua até ao meio-dia, mas que talvez fosse preferível não andar em Pall Mall depois das 12h, por causa da dita manifestação.
Tomei boa nota. Fui às compras em St. James, e engraxei os sapatos numa das inúmeras lojas locais. O jovem engraxador usava um impecável uniforme, com gravata, e com duas bandeiras cruzadas na lapela: da Grã-Bretanha e do Bangladesh. Perguntei-lhe há quanto tempo vivia em Inglaterra. “Doze anos, sir”, respondeu orgulhosamente. Perguntei-lhe em seguida se sabia de uma manifestação que ia ocorrer em Pall Mall daí a pouco tempo. Com surpresa, ouvi o único discurso político sobre o tema em toda a minha viagem:
“Sim, claro que sei. Vai ser daqui a pouco. É uma manifestação contra o ‘Brexit’ e por um segundo referendo. É uma manifestação das elites europeias contra a democracia britânica. Nós votámos no referendo pela saída da União Europeia. Eles não aceitam a nossa escolha democrática e querem impor-nos o ‘Remain’”.
Bastante estupefato, perguntei então ao meu interlocutor: “O senhor votou no referendo?” E ele respondeu assertivamente: “Sim, com muito orgulho. Eu sou um cidadão britânico. E todos os que, como eu, vêm dos países de língua inglesa — Bangladesh, Índia, Austrália, Nova Zelândia — todos votámos pelo Brexit. A união Europeia impõe um sistema desleal de imigração no Reino Unido: os que vêm da Europa podem entrar sem demoras, mas nós, vindos da Commonwealth, temos imensos obstáculos” (que ele enumerou sem hesitações, mas de que eu não consegui tomar nota).
Preparava-me para continuar a conversa quando olhei para o relógio e reparei que tinha passado as 12h avisadas pelo Clube. Agradeci enfaticamente a apressei-me para Pall Mall.
A manifestação já começara e ocupava toda a rua, em direcção ao Parlamento. Eu ia em sentido contrário aos manifestantes, mas não senti a menor hostilidade (é certo que não usava bow-tie, nem o Telegraph). O grupo, bastante massivo e ininterrupto, pareceu-me simpático e bem disposto, embora não tão jovem como tinha sido anunciado. Os placards que transportavam eram em grande parte de produção caseira e bastante divertidos. O meu preferido dizia: ‘Fromage, not Farage’.
Quando cheguei ao Clube, onde a indiferença pela manifestação que passava à porta era total, perguntei se podia almoçar sem gravata. O impecável recepcionista, de gravata, respondeu que sim: de acordo com as novas regras, os sócios podiam não usar gravata até às 18h, aos fins de semana, até às 11h, durante a semana. Perguntei-lhe se ele gostava destas “regras modernas”. E ele respondeu, imperturbável : “I couldn’t possibly comment, sir.”
Resolvi envergar um dos meus Churchillian bow-ties. Pelo sim pelo não, levei para a mesa o suave Financial Times, em vez do Telegraph. Verifiquei que, na mesa em frente da minha, um sócio idoso lia ostensivamente o Telegraph. Pouco depois, na mesa ao lado da minha, sentou-se outro sócio idoso, este de tweed, lendo atentamente um livro de Michael Oakeshott.
O grande dilema surgiu a seguir. Quando o empregado trouxe o ‘Stilton & Port”, apresentou-me dois pratos de sobremesa, um de Oxford, outro de Cambridge, e perguntou-me qual preferia. Embaraçado, respondi: “bem, eu estudei em Oxford, mas acabo de chegar de Cambridge”. Após um silêncio, ele respondeu: “ Talvez eu possa sugerir um compromisso, sir. Fica com os dois e usa um pouco de cada um enquanto aprecia o Stilton.”
Assim fiz. E o compromisso foi agradável.