Começou ontem, em Praga, a 21ª edição da conferência do Forum 2000, uma instituição dedicada à memória de Vaclav Havel e aos valores demo-liberais que exemplarmente defendeu. A sessão deste ano — intitulada “Defendendo a Democracia em Tempos Incertos” — decorre até quarta-feira e reúne largas centenas de participantes vindos de todo o mundo, particularmente da Europa e dos EUA. Amanhã, terça-feira, reunirão separadamente os signatários do Apelo de Praga para a Renovação Democrática, aprovado em Maio passado, e de que na altura aqui dei conta no Observador.

É difícil definir exactamente (eu diria, cartesianamente) a natureza política destes encontros. A principal dificuldade reside no facto óbvio de que estão aqui reunidas pessoas com diferentes disposições políticas particulares. Temos conservadores, democrata-cristãos, liberais, sociais-democratas e socialistas democráticos; no caso americano, temos republicanos e democratas. Porquê?

Os promotores do evento definem o encontro como uma reunião de amigos da democracia liberal. Penso que é uma definição feliz e apropriada. Na sessão de abertura, ontem à noite, falaram “freedom fighters” oriundos da China, de Cuba e da Venezuela. Nos próximos dias, estarão também em debate os grandes desafios actuais das democracias europeias e norte-americanas.

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Na minha particular opinião, gosto de interpretar como chão comum destes amigos da democracia liberal a recusa daquilo que Ralf Dahrendorf — um alemão e britânico que enfrentou o nazismo e o comunismo — designava como “infelizes dicotomias”: dicotomias que inviabilizam a democracia parlamentar.

Uma dessas infelizes dicotomias reside na oposição entre populismo e vanguardismo. Dahrendorf costumava dizer que, se respondermos ao populismo com vanguardismo, iremos obter o reforço do populismo. E, se respondermos ao vanguardismo com populismo, vamos obter o reforço do vanguardismo.

O resultado desta infeliz dicotomia, segundo Dahrendorf, será deveras infeliz: será o enfraquecimento do “centro vital” que sustenta uma controvérsia liberal, democrática, parlamentar entre tendências rivais — e claramente diferenciadas — mas todas elas civilizadas e “gentlemanly” (para usar dois termos antiquados, que espero não tenham entretanto sido proibidos entre nós).

Uma expressão destas infelizes dicotomias, a que Dahrendorf particularmente se opunha, era a oposição entre sentimento nacional e espírito cosmopolita, ou internacionalista. Ele era um defensor acérrimo de ambos e um opositor acérrimo da oposição entre eles. Este olhar aparentemente extravagante foi na verdade subscrito pelo Apelo de Praga de Maio passado:

“A democracia exprime valores universais, mas ela existe em contextos nacionais particulares, aquilo a que Vaclav Havel chamava de ‘tradições intelectuais, espirituais e culturais que lhe dão respiração e sentido’. Por isso, a identidade nacional é demasiado importante para ser deixada à manipulação de déspotas e de demagogos populistas”.

Por outras palavras, não devemos aceitar a ilusória oposição entre os valores universais da democracia e o sentimento de identidade nacional, o sentimento de orgulhosamente pertencer a “algum lugar” (por contraste com “pertencer a qualquer lugar”, o que pode significar “não pertencer a lugar algum”).

Pelo contrário, pode muito bem acontecer que a mais segura garantia da democracia continue a ser o sentimento patriótico nacional — que, por isso mesmo, deve ser cuidadosamente distinguido do nacionalismo étnico e agressivo, bem como do cosmopolitismo anti-nacional.

Por outras palavras, em meu entender, é possível e desejável recusar a infeliz dicotomia entre populismo e vanguardismo. E talvez este possa constituir também um conselho de prudência para a União Europeia: talvez não seja boa ideia opor (cartesianamente) o sentimento nacional ao alegado projecto europeu de uma “ever closer union”.