Os democratas franceses — bem como os europeus e, em geral, os do resto do mundo — terão suspirado de alívio com a derrota eleitoral de Marine Le Pen na segunda volta das presidenciais francesas de ontem. Foi certamente o meu caso.
Uma boa parte de todos esses democratas terá também celebrado com euforia a vitória de Emmanuel Macron. Lamento ter de dizer que não foi o meu caso. Celebrei, certamente, mas sem euforia.
Não tenho nada de especial contra Emmanuel Macron (a não ser talvez o facto de o seu livro, que ainda não li, se intitular “Révolution”, e de ter fundado um partido com as suas iniciais). Mas tenho sérias reservas sobre o que se está a passar em França (bem como em vários outros países europeus).
A primeira reserva, que já apresentei aqui em artigos anteriores, decorre da erosão dos partidos centrais da democracia francesa (e de vários outros partidos centrais de democracias europeias, como a Grécia, a Itália, a Suécia e a Holanda, em parte a Espanha, para não mencionar as de Leste).
Convém recordar que os candidatos dos dois partidos centrais franceses (Fillon, pelos Republicanos, Hamont, pelos Socialistas) obtiveram na primeira volta menos de 30% dos votos. Nenhum dos dois candidatos que chegaram à segunda volta representa um partido central e com tradições enraizadas na democracia francesa. O vencedor, Emmanuel Macron, criou há poucos meses um partido com as suas iniciais (En Marche) — embora pareça já destinado a ganhar as próximas eleições legislativas de Junho.
Muitos democratas de boa-fé dirão que isto é um bom sinal. Mostra que a França é capaz de mudar, contra as “oligarquias partidárias” instaladas. Ainda por cima, acrescentarão, a França acaba de eleger o mais jovem líder desde Napoleão (foi nestes termos, curiosamente, que o Washington Post enviou o primeiro “alerta” sobre os resultados eleitorais de ontem).
Lamento ter de dizer que esses motivos de regozijo para tantos dos meus amigos são razões de apreensão para mim. Não sou admirador da juventude de Napoleão (nem mesmo do Napoleão mais maduro). Também não vejo como sintoma de bom gosto a criação de um partido com as iniciais do seu fundador. E não vejo razões empíricas para sustentar a opinião de que mudanças de fundo têm de, ou devem, ser feitas contra os partidos ou as instituições tradicionais. Em regra, são as revoluções, não as reformas de fundo, que costumam ser feitas contra ou à margem dos partidos e das instituições tradicionais.
Lamento ainda ter de acrescentar que não sou admirador de revoluções: em regra sabemos onde começam, mas nunca sabemos onde acabam. É certamente verdade que há situações que exigem uma revolução — basicamente as tiranias que impedem a reforma gradual. Mas, mesmo nesses casos, todas a revoluções que não degeneraram em novas tiranias— como a inglesa de 1688, ou a americana de 1776, ou a portuguesa de Abril de 1974/Novembro de 1975 — foram revoluções relutantes. Em contrapartida, as revoluções ardentes de 1789, em França, e de Outubro de 1917, na Rússia, deram lugar a novas tiranias. E, por isso mesmo, certamente destruíram todas as instituições tradicionais e “oligárquicas” que as precederam.
Este tema das “revoluções relutantes versus revoluções ardentes” leva-me à segunda grande reserva acerca do que se está a passar em França e em tantos países europeus. Esta reserva diz respeito ao quadro conceptual em que o combate político nesses países tende a ser feito: o quadro da dicotomia entre “nacionalismo versus globalismo”.
Recordo que foi exactamente nestes termos que Marine Le Pen colocou a questão. E lamento que os termos colocados pela nacional-socialista francesa tenham sido aceites pela generalidade dos comentadores. Os termos de Marine Le Pen, “nacionalismo versus globalismo” são já a dicotomia em que o debate político europeu tende a ser definido.
Mas estará empiricamente corroborada a asserção de que existe uma oposição de fundo entre nacionalismo e globalismo? Dificilmente.
A primeira grande globalização da era moderna foi iniciada por um Estado-nação — e receio ter de recordar que era já nessa altura bastante antigo e se chamava Portugal. Em seguida, inúmeros estados-nação da Europa seguiram o caminho da globalização — incluindo a Espanha, a Holanda, a Inglaterra e a França, para citar apenas alguns. Depois da derrota da ilusão pós-nacional de Napoleão e depois do Congresso de Viena, em 1815, a Europa e o mundo experimentaram um período sem precedentes de comércio livre baseado em estados descentralizados — que só foi ultrapassado depois da queda do império soviético, em 1989.
Por outras palavras, não vejo qualquer razão empiricamente testável para dizer que o sentimento nacional se opõe necessariamente ao comércio livre e à globalização. Mas há razões para temer essa infeliz dicotomia entre “nacionalismo versus globalismo”: se as pessoas que sentem um legítimo orgulho nacional continuarem a ser confrontadas com essa dicotomia enganadora, podem acabar por escolher o protecionismo — pensando que estão a optar pelo sentimento nacional.
Por outras palavras, os europeístas defensores do comércio livre e da globalização não devem aceitar a infeliz dicotomia entre “nacionalismo e globalismo”. Nem a infeliz dicotomia entre “contra-revolução ou revolução”.