1 Sobre as eleições em França, a vitória de Macron merece certamente ser celebrada. Mas a significativa votação em Le Pen não deve ser ignorada. E, sobretudo, vale a pena voltar a sublinhar o quase desaparecimento eleitoral na primeira volta dos candidatos dos partidos centrais — os Republicanos ao centro-direita e os Socialistas ao centro-esquerda — que sustentaram a democracia liberal da V República. O alcance desse enfraquecimento da concorrência moderada entre dois partidos centrais não deve ser menosprezada.

Sintomaticamente, um dos primeiros grandes defensores da importância de (pelo menos dois, nacionalmente estruturados e institucionalmente estáveis) partidos políticos foi um crítico da revolução francesa de 1789: Edmund Burke (1729-1797). Por causa dessa crítica à revolução francesa, Burke foi descrito no continente como um reaccionário defensor do Antigo Regime. Tratou-se, também sintomaticamente, de uma primeira dissonância cognitiva entre a cultura política continental e a cultura política marítima.

2 Edmund Burke foi um deputado Whig (antepassados dos Liberais). Defendeu a conciliação com os colonos americanos em plena guerra colonial de Londres contra os colonos na América — argumentando precisamente que os colonos estavam a defender na América as inglesas liberdades ancestrais da Magna Carta de 1215. Liderou a impugnação do Governador da Índia (Warren Hastings), acusando-o de desrespeitar as culturas locais indianas e de, por essa via, desrespeitar os princípios liberais-pluralistas da cultura e do Império britânicos. Finalmente, criticou asperamente as tendências centralizadoras e uniformizadoras do Rei George III — que acusou de estar a tentar impor “um projecto de perfeição numa monarquia muito para além da república visionária de Platão”.

Foi precisamente no âmbito desta crítica ao centralismo do Rei George III que Burke desenvolveu o argumento a favor da institucionalização de pelo menos dois partidos políticos à escala nacional. No pluralista Parlamento britânico havia obviamente na época uma pluralidade de grupos e sensibilidades políticas. Mas não estavam nacional e institucionalmente estruturados em partidos políticos. Burke defendeu que a estruturação nacional de pelo menos dois partidos políticos seria indispensável para controlar o Governo e impedir um despótico “Governo de Corte” liderado pelo Rei. Esse sistema de dois partidos — acrescentou visionariamente — seria também crucial para impedir ou tornar desnecessárias revoluções (que todos sabemos onde começam, mas ninguém sabe quando e como acabam).

3 É também muito revelador que Karl Popper (1902-1994) — o célebre filósofo austríaco, exilado na Nova Zelândia durante a II Guerra, depois acolhido em Londres e galardoado pela Rainha com o título de Sir — tenha enfaticamente citado Edmund Burke. Disse Popper que Burke tinha detectado a profunda dissonância cognitiva entre duas culturas políticas — marítima e continental — que exprimiam uma dissonância filosófica mais profunda: entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático.

O racionalismo dogmático — de ascendência Cartesiana e em pleno fulgor no chamado Iluminismo continental — era fundado na crença ingénua nas chamadas “certezas” ditadas pela ‘Razão’ (sempre com R maiúsculo). Por isso, alimentava a centralização política e a uniformização ditada pelos poderes centrais, alegadamente ‘iluminados pela Razão’. Este dogmatismo racionalista gerava necessariamente um dogmatismo rival, em regra irracionalista, e essa era a origem da tendência continental para a primitiva oscilação entre revolução e contra-revolução.

Em contraste, o racionalismo crítico e anti-dogmático (com ascendência em Adam Smith, David Hume e Edmund Burke, entre outros) assentava no falibilismo e desconfiava por isso de todos os grandes planos de transformação social, alegadamente ‘Racionais’, dissociados da experiência e da tradição. Por isso, este racionalismo crítico é favorável à mudança gradual, por ensaio e erro, e à convivência pacífica e descentralizada entre diferentes instituições e modos de vida da sociedade civil, independentes do estado. Defende, em primeiro lugar, o Parlamento, fundado na rivalidade entre pelo menos dois partidos rivais, como lugar primeiro de controlo do poder central.

4 Estes temas foram retomados por Ralf Dahrendorf (1929-2009)— um alemão preso pelos nazis aos 15 anos, depois aluno de Popper em Londres na LSE, depois Reitor da LSE, depois galardoado pela Rainha com o título de Sir, depois com o título de Lord.

Dahrendorf retomou os argumentos de Burke e de Popper sobre as culturas políticas marítimas e continentais. E acrescentou que um dos traços distintivos do racionalismo dogmático da cultura continental é a propensão para gerar e acreditar em “dicotomias infelizes”: a dicotomia entre ‘Antigo Regime vs. Revolução’, entre ‘povo vs. elites’, entre ‘nacionalismo vs. globalismo’, para citar apenas algumas.

Dahrendorf, que foi também membro da Comissão Europeia em representação da Alemanha, era particularmente crítico da infeliz dicotomia entre nacionalismo e globalismo. Definia-se como ‘multilateralista’ e defendia simultaneamente o institucionalismo multilateral, o comércio livre e o sentimento nacional ou patriótico — que sublinhava ser indissociável da democracia parlamentar.

5 Curiosamente, vários artigos recentes vieram sublinhar esta importância crucial do sentimento nacional como suporte da democracia e do multilateralismo. Marc Plattner — fundador do Journal of Democracy e presidente do International Advisory Board do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica (IEP-UCP) — publicou a 11 de Abril na revista online American Purpose um artigo intitulado “Nationalism and the Struggle in Ukraine”. Aí recorda que “o século XX deixou um amargo sabor na boca acerca do nacionalismo. Mas o nacionalismo de estilo ucraniano hoje observável é não só compatível como também fortemente defensor da democracia liberal.”

Francis Fukuyama escreve também a propósito da Ucrânia na revista Foreign Affairs com data de Maio/Junho. O título é “A Country of Their Own”. E o subtítulo também não podia ser mais claro: “Liberalism Needs the Nation”.

Post scriptum: 48 anos do 25 de Abril são celebrados hoje, com legítima alegria e legítimo orgulho. Uma excelente celebração antes da data teve lugar na Assembleia da República — que aplaudiu de pé a mensagem do Presidente Zelensky. Uma humilde celebração, depois da data, terá lugar amanhã, na Universidade Católica, com a 10ª edição anual do “Open Day” do IEP-UCP, sempre intitulado “Cimeira das Democracias”. 38 escolas do ensino secundário de todo o país (incluindo a Madeira) virão a Lisboa, representando cada uma delas uma democracia — e a Ucrânia também estará representada, curiosamente por uma equipa de alunos do próprio IEP. Durão Barroso será o orador da sessão de abertura e todo o evento tem o apoio do gabinete do Parlamento Europeu em Lisboa. É uma festa da democracia — e certamente festejaremos o 25 de Abril, cuja mensagem liberal-democrática foi reafirmada a 25 de Novembro de 1975.

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