Por amável coincidência, celebrei os 50 anos do 25 de Abril em Oxford, no St. Antony’s College, num jantar formal (‘Fellows’ Dinner’ ) que teve lugar na passada quarta-feira, 24 de Abril. Foi literalmente uma coincidência que o jantar de abertura do chamado ‘Trinity Term’ (21 de Abril a 15 de Junho) tenha ocorrido na noite anterior ao 25 de Abril. E foi simplesmente impressionante a homenagem e carinho que todos os presentes quiseram exprimir aos 50 anos do 25 de Abril, quando se deram conta da feliz coincidência. O tema, aliás, vai ser debatido num seminário promovido pelo European Studies Centre, no próximo dia 21 de Maio, sobre as transições à democracia em Portugal, Grécia e Espanha.
Talvez possa ser modestamente recordado que o 25 de Abril de 1974 não foi “apenas” o epílogo de uma longa ditadura em Portugal — uma “ditadura saloia”, assim era olhada com desdém condescendente pelas democracias euro-atlânticas. No plano estritamente académico, o 25 de Abril de 1974, certamente depois confirmado pelo 25 de Novembro de 1975, terá inaugurado a chamada “Terceira Vaga de Democratização à escala mundial”. Este foi o veredicto do distinto professor de Harvard, Samuel P. Huntington, no seu livro de 1991, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century.
Por outras palavras, Huntington colocou o 25 de Abril de 1974, corroborado pelo 25 de Novembro de 1975, na origem da 3ª vaga mundial de transições à democracia que, numa segunda fase, terá levado à queda do Muro de Berlim — isto é, do comunismo na Europa Central e de Leste — em 1989. Mais incrível ainda, a tese de Huntington foi genericamente aceite e adoptada pela comunidade académica internacional.
Esta feliz dimensão internacional do 25 de Abril, corroborado pelo 25 de Novembro, levou a um muito estimulante debate académico internacional sobre a natureza da democracia e suas diferentes interpretações. Esse debate académico internacional de certa forma revisitou o debate/confronto entre dois conceitos de democracia (populista/marxista vs. constitucional/liberal, digamos assim) que esteve subjacente ao chamado PREC, entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975.
Num primeiro momento daquele debate académico internacional, foi questionada a ideia vulgarmente aceite de que a democracia moderna teria sido inaugurada pela Revolução Francesa de 1789. Inúmeros autores, entre os quais o próprio Samuel P. Huntington, chamaram a atenção para que, antes da (radical) Revolução Francesa, tinham ocorrido a (moderada) Revolução Americana de 1776 e a (conservadora-liberal) Revolução Inglesa de 1688.
Inúmeros outros autores, designadamente a distinta historiadora americana Gertrude Himmelfarb, vieram em seguida recordar a profunda distinção entre a revolução inglesa de 1688 e a americana de 1776, por um lado, e a revolução francesa de 1789, por outro. Chamou ela às primeiras (inglesa e americana) “revoluções relutantes” — e à revolução francesa chamou “revolução ardente”, considerando que ela terá sido inspiradora da “ardente” revolução bolchevique de 1917 na Rússia.
Esta interessante distinção de Himmelfarb conduziu a uma muito estimulante retrospectiva sobre as diferentes teorias da democracia na história do pensamento político ocidental. Karl Popper foi intensamente revisitado, devido ao seu argumento sobre as duas concepções opostas de democracia: uma sobre “quem deve governar” [um, alguns, ou todos reunidos em colectivo], outra sobre “como mudar de governo sem violência “.
Neste segundo entendimento — que Popper enfaticamente defendeu e associou às relutantes revoluções inglesa e americana —, a democracia é sobretudo acerca de regras gerais constitucionais [semelhantes a regras gerais de ‘gentlemanship’, ou de boa educação] que permitem e garantem a alternância pacífica no Parlamente entre propostas rivais que prestam contas aos eleitores.
Estas regras gerais constitucionais supõem um entendimento global da democracia como sistema de governo limitado pela lei, com separação de poderes e sistema de freios e contrapesos, assentes na garantia da liberdade e do pluralismo (o “direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, na célebre formulação da Declaração de Independência americana de 1776). Uma importante consequência deste entendimento constitucional da democracia é que a democracia não é de esquerda nem de direita: é de ambas, e da concorrência e alternância civilizadas entre esquerda e direita civilizadas, quando elas rejeitam os populismos revolucionários de esquerda e de direita.
Creio, pessoalmente, que foi esta feliz segunda interpretação — democrática, liberal e constitucional — que o 25 de Abril de 1974, corroborado pelo 25 de Novembro de 1975, permitiu colocar Portugal no início da Terceira Vaga de Democratização à escala mundial. Entre os vários “Príncipes da Democracia” (como lhes chamei em crónica anterior) a quem devemos a vitória da democracia liberal destacam-se Mário Soares e Maria Barroso Soares — cujos centenários dos seus nascimentos, também por muito feliz coincidência, celebramos também este ano (no caso de Mário Soares) e em 2025 (no caso de Maria Barroso).