1 Na passada quinta-feira, 24 de Março, a duração da democracia em Portugal atingiu mais um dia do que a da ditadura do chamado ‘ Estado Novo’ que a precedeu. O facto merece sem dúvida celebração, mas também justifica reflexão.

Um dos temas incontornáveis é a longa duração do Estado Novo (48 anos). Mas não só. O Estado Novo foi precedido por uma I República de tipo jacobino que também perseguia os dissidentes (e que durou 16 anos, 1910-1926). Por outras palavras, o século XX em Portugal foi marcado por 64 anos (1910-1974/5) de regimes políticos não-democráticos — o que foi uma excepção na Europa. A pergunta incontornável é: porquê?

2 A reflexão sobre este tema não caberia seguramente neste espaço. E, mesmo que coubesse, eu não teria a pretensão de saber responder-lhe conclusivamente (começando pela simples e objectiva limitação de que não sou historiador). Mas, além disso e sobretudo, trata-se de um tema para uma conversação aberta e pluralista na qual várias vozes e vários olhares devem ser bem-vindos e escrutinados civilizadamente por argumentos diferentes, incluindo rivais.

3 Esta ideia de conversação remete-nos possivelmente para um factor que certamente terá contribuído para a ausência de democracia entre nós durante 64 anos do século XX: a ideia crucial de conversação esteve ausente, pelo menos como ideia crucial, das concepções dominantes opostas sobre o melhor regime político — quer durante a I República quer durante o Estado Novo. Ambos acreditavam, julgo que sinceramente, que as soluções defendidas por cada um eram as ‘soluções certas’.

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Cito este factor como puramente intelectual, ou cultural, e propositadamente trato-o como independente de factores sociais, económicos, ‘de classe’ ou outros factores de ordem material que tendem usualmente a ser citados em primeiro lugar.

4 Não reclamo qualquer originalidade para esta ênfase na dimensão cultural ou intelectual da democracia. Aprendi-a com Karl Popper e depois fui encontrá-la numa vasta tradição de pensadores — uns com disposições políticas mais à esquerda, outros mais à direita (como se diz no continente europeu, mas não entre os povos de língua inglesa, onde referem apenas com igual respeito, conservadores, liberais e trabalhistas), e todos com uma disposição comum a favor da democracia liberal.

Karl Popper fez da ideia de conversação e concorrência pluralista o centro da sua teoria da democracia ou do contraste entre a sociedade aberta e os seus inimigos [título da famosa obra de 1945, traduzida em quase todas as línguas do planeta, ainda hoje disponível em inglês (e creio que em português, embora, talvez sintomaticamente, apenas numa primeira tradução de 2012, pelas Edições 70)].

Basicamente — e alertando enfaticamente para a necessária simplificação neste espaço — Popper alertou para o erróneo e tendencialmente dominante entendimento da discussão sobre ‘Qual é o melhor regime?’ como uma discussão sobre ‘Quem deve governar?’. As três grandes respostas clássicas a essa pergunta foram: deve governar Um (Monarquia), ou Alguns (Aristocracia), ou Muitos/Todos (Democracia).

Popper considerou a pergunta, bem como as três respostas usuais, como básica e fundamentalmente equivocadas. E vigorosamente argumentou que estão equivocadas não só no plano filosófico mas fundamentalmente também no plano empírico — porque as democracias ocidentais mais antigas (a começar pela inglesa, de que ele era profundo admirador) nunca se fundaram na questão “Quem deve governar?”.

5 Em alternativa, propôs uma pergunta significativamente diferente: “Como substituir Governos sem violência (without bloodshed)? E sublinhou duas diferenças cruciais entre esta nova pergunta e a anterior pergunta sobre “Quem deve governar?”.

Em primeiro lugar, em vez de “Quem?”, a formulação de Popper pergunta “Como?”. E a questão crucial é que, enquanto “Quem?” remete necessariamente para pessoas, a pergunta “Como?” remete necessariamente para regras. Isto significa, no caso da democracia, que a sua principal característica não reside no governo absoluto do chamado povo mas no governo limitado pela lei que presta contas aos eleitores e que pode por eles ser substituído pacificamente — em eleições livres, periódicas e em concorrência pluralista entre candidatos/partidos rivais.

Em segundo lugar, a pergunta “Como substituir Governos sem violência?” — ao contrário da pergunta “Quem deve governar?” — não remete para uma “perfeita solução governativa”. Pelo contrário, apenas garante a possibilidade de mudar de governo — e não garante que o próximo Governo será melhor. Por outras palavras, como disse Winston Churchill, “a democracia é o pior regime — com excepção de todos os outros” — ela não garante, e em rigor não aspira, ao melhor Governo; apenas garante o que as ditaduras não permitem, a mudança pacífica de Governo que presta contas e depende do Parlamento.

6 Em suma, gostaria que celebrássemos a nossa querida longevidade da democracia portuguesa com um voto de pluralismo tolerante e não de de luta de classes ou de guerra entre convicções rivais.