1 O Parlamento reprovou o Referendo à Eutanásia que uma iniciativa popular, nos termos da Constituição, lhe dirigiu. Fê-lo com argumentos falaciosos e toldados por uma ideologia que não se pode deixar de denunciar.

2 Disse-se: “A pergunta proposta era inconstitucional”. Não foi fácil formular a pergunta, mas a apresentada colheu o visto de ilustres constitucionalistas e é fiel ao texto penal. Se os deputados tinham esse óbice poderiam, nos termos dos poderes que lhes estão conferidos, apresentar iniciativa legislativa com pergunta que lhes parecesse mais conforme à Constituição. Além de que cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a conformidade da pergunta. Mas, em Setembro próximo, se o processo legislativo ainda não estiver concluído, qualquer um dos grupos parlamentares pode ainda propor, de novo, um referendo à eutanásia. Com a pergunta que desejarem. Porque não?

Tal argumento é bacoco e sem credibilidade política/científica. Areia para olhos incautos.

3 Argumentou-se que “nem a Vida nem os Direitos Humanos são referendáveis”. Ora, tudo o que é legislável (e não vedado pela Constituição, art.º 115 n.º 4) é referendável. Este não era um referendo à vida ou à morte. Era o pressuposto para que se pudesse fazer, ou não, uma lei que permite ao Estado autorizar que se mate um homem ou uma mulher, pretensamente na plenitude das suas capacidades mentais.

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Se a matéria não fosse referendável, não teria, sequer, sido admitida na sequência do relatório do deputado António Filipe (PCP) e proferido, subsequentemente, despacho do Presidente da Assembleia da República.

É, por isso, um argumento bacoco e sem credibilidade política/científica. Areia para olhos incautos.

4A questão é demasiado complexa para ser decidida por sim ou não”. Todas as questões levadas a referendo, no mundo inteiro, são complexas e a resposta só pode ser um sim ou um não. É por isso que o poder legislativo é do Parlamento. Mas a questão basilar é clara. Será o povo menos sabedor do que os deputados? Aliás, dezenas de entidades, reconhecidas e ouvidas pelo Parlamento, deram parecer negativo à eutanásia. Serão menos capacitados que os srs. deputados? Bem sabemos que o referendo seria apenas para dar, ou não, luz verde ao legislador.

Mais um argumento sem qualquer fundamento político/científico. Areia para olhos de incautos.

5 Invocou-se o “direito à liberdade de cada indíviduo” em optar entre o “sofrimento indizível” e a eutanásia. Como se a alternativa só tivesse esses dois polos. Esquece-se que esse argumento (do século passado) tem hoje um conjunto de alternativas que não podemos ignorar. Entre o “sofrimento” e o “pedir para ser morto”, há todo um conjunto de alternativas da Medicina, dos cuidados paliativos, das unidades de dor, do amor e dos que estão mais próximos, que podem e devem falar mais alto. E que a lei e a sociedade têm a obrigação de proporcionar a quem se encontre nessas circunstâncias.

O argumento da pseudo-liberdade (individualismo) não tem qualquer fundamento político/científico. Areia para olhos de incautos.

6 Será inútil continuar a esgrimir contra todos os “moinhos de vento”, que infelizmente se levantaram como objecção ao referendo. Do debate parlamentar apenas resultou a falta de fundamentos científicos, éticos e sociais. Mas transbordou a força do poder e a arrogância de quem, uma vez eleito, esquece o eleitor e os mais carenciados. Esquece o bem comum e fica cego por uma ideologia que não olha a meios para impor até a morte dos mais vulneráveis.

7 Mas também se viu um poder que não suporta, e por isso tenta humilhar, ignorar, desdenhar e esmagar os movimentos cívicos que não são manipulados pelos partidos. A movimentação cívica espontânea e independente é incomoda e deve ser abafada, ainda que com argumentos sem sentido – areia para os olhos de alguns….

8 A eutanásia ainda tem caminho a percorrer. Ficou claro que quem se propõe fazer a lei não ouve a ciência (Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros, Conselhos Superiores das Magistraturas, professores universitários de topo, associações reconhecidas e dezenas de entidades), não reconhece a ética (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – entidade nomeada por órgãos estatais e pelo próprio Parlamento) e não quer ouvir o povo. O chumbo do referendo pode ter arrastado consigo o chumbo da eutanásia.

9 Se esta lei for aprovada deste modo, está aberto caminho para o autoritarismo e o despotismo. A democracia está fragilizada e à mercê de quem se quiser apresentar para “limpar o mundo”. No governo dos povos não basta seguir a forma dos actos, quando essa “forma” destrói a substância. O edifício está ferido e facilmente cai.

10 Oxalá, ainda haja quem olhe para esta lei que permitiria ao estado licenciar a morte de pessoas (a pedido destas) e possa fazer valer a democracia, o Estado de Direito e a Constituição.

O chumbo do referendo pode também chumbar a eutanásia.