Enquanto Vladimir Putin estiver no Kremlin ou os seus sucessores seguirem a sua política, Moscovo jamais irá reconhecer que Alexey Navalnyi foi envenenado por forças internas. E, se foi envenenado, só pode ter sido obra de “serviços secretos estrangeiros”. Foi o que aconteceu com Alexandre Litvinenko e Serguei Skripal na Grã-Bretanha e com Alexey Navalnyi, na Rússia.

Numa entrevista televisiva emitida na véspera, o Presidente russo nem sequer abordou essa questão, pois não a considera importante. Aliás, ele recusa-se a pronunciar sequer o nome e o apelido de um dos mais mediáticos dirigentes da oposição russa, exemplo que é seguido pelo seu porta-voz Dmitri Peskov. Quando os jornalistas lhe perguntaram porque é que ele faz isso, Peskov respondeu: “isso não muda a essência da questão”.

Por conseguinte, os médicos alemães podem afirmar e provar o que quiserem, mas o “czar” já tomou a decisão: “não houve envenenamento” desse súbdito e essa decisão não pode ser revista, apenas pode ser reforçada com “novos argumentos” a favor dela.

Por exemplo, Viatcheslav Volodin, presidente da Duma Estatal (câmara baixa do Parlamento russo), já anunciou que a criação de uma comissão para investigar a pista do papel dos serviços secretos estrangeiros na acção contra Navalnyi. E, cúmulo do cinismo, um dos membros dessa comissão é Andrey Logovoi, antigo agente dos serviços secretos russos que foi acusado pelas autoridades britânicas de participar no envenenamento de Litvinenko!

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Claro que todas as versões, mesmo as mais incríveis, têm direito a existir, mas a de Volodin levanta uma séria questão: como será possível envenenar um cidadão russo que, tendo um nome e um apelido “impronunciáveis”, é não só um dos mais conhecidos rostos da oposição a Putin no território da Rússia, mas também uma das pessoas constantemente mais vigiadas por agentes do Serviço Federal de Segurança da Rússia (ex-KGB soviético)?

As respostas podem ser várias: ou os serviços secretos russos andam pelas “ruas da amargura”, ou eles próprios participaram, directa ou indirectamente, na operação, ou será que chegou a hora de acreditar na existência de James Bond?

Porque será que esta declaração partiu de um dos homens mais próximos do Kremlin. Essa iniciativa só pode ter uma explicação: aquando das eleições para o cargo de Presidente da Câmara de Moscovo, em 2013, Volodin, então vice-chefe da Administração Presidencial da Rússia, convenceu o “czar” a permitir que Alexey Navalnyi participasse nesse escrutínio, prometendo que o líder da oposição sairia desacreditado. Porém, tal não aconteceu, pois ele ficou em segundo lugar com 27,24% dos votos. E isto numas eleições cujos resultados foram fortemente contestados pela oposição.

A partir daí, o agora chefe do parlamento obediente ao Kremlin passou a ter mais cuidado com as iniciativas e a aplicar-se mais na arte de “agradar ao dono”.

Quanto à qualidade operativa dos serviços secretos russos, é verdade que, depois da chegada do coronel do KGB Putin ao Kremlin, os agentes do Serviço Federal de Segurança preocupam-se muito com o controlo total do poder no país e com o enriquecimento ilícito.  Isso poderia ser uma explicação para a perda de vigilância no seu principal mester.

Na citada entrevista, o dirigente russo acusou os serviços secretos ucranianos e norte-americanos de terem organizado a “provocação” que levou à detenção de 32 mercenários russos na Bielorrússia. Homens com grande experiência militar em Donbass, Síria, Líbia, etc., alguns deles com fortes ligações aos serviços russos de espionagem, deixaram-se levar por fartas ofertas de dinheiro e não foram capazes de compreender que estavam a ser contratados pelo “inimigo”. Ao detê-los na Bielorrússia, o ditador Alexandre Lukachenko fez “um grande favor” ao seu homólogo russo.

A tentativa de envenenamento de Navalniy e a “aventura” dos mercenários russos na Bielorrússia são exemplos de que Vladimir Putin nem controla os seus serviços secretos em particular, nem a situação no seu país em geral. Isto se dermos por adquirido que não foi ele que pessoalmente deu a ordem para liquidar um dos dirigentes da oposição na Rússia.

No caso concreto de Navalnyi, é sabido que ele fez numerosos inimigos na elite política, económica e financeira com as suas investigações sobre a corrupção nesse meio. Não se pode pôr de parte a possibilidade de ele ter sido alvo da ira de dalguns dos desmascarados. Não seria a primeira vítima de clãs e grupos mafiosos na Rússia.

Não se pode pôr de parte a possibilidade de o atentado contra o líder da oposição fazer parte na luta no interior dessa elite pelo poder. Putin não é eterno e a sua autocracia dá sinais de erosão

A minha opinião consiste em que Navalnyi não constitui um perigo real para o Kremlin, não só porque a oposição ao actual regime está desunida, mas também porque nem todos os descontentes o apoiam incondicionalmente. O seu programa e declarações políticas são pouco claros, não se sabendo o que esperar dele caso chegue ao poder.

A Bielorrússia é de Putin

Nunca houve dúvidas de que a crise bielorrussa, provocada pela falsificação dos resultados eleitorais por Lukachenko, não podia ser resolvida, desde o seu início, sem a participação da Rússia. Era claro que o Kremlin não deixaria escapar o seu mais próximo aliado do antigo espaço soviético.

Porém, a forma descarada e bruta como é feita por Putin constitui mais uma amostra do cariz imperialista e revisionista da sua política externa. Ele dá-se ao luxo de anunciar que está a “formar uma determinada reserva de agentes dos órgãos de segurança” para enviar para a Bielorrússia” no caso de Lukachenko perder o controlo da situação. Tal como em relação à Ucrânia, o dirigente russo recorre à doutrina da “soberania limitada”, proclamada pelo dirigente soviético Leonid Brejnev.

E para que fique claro de que lado do conflito está Putin, este aprovou a política repressiva do seu homólogo bielorrusso em relação aos muitos milhares de apoiantes da oposição.

“Se olharmos objectivamente, penso que os órgãos de segurança da Bielorrússia se comportam de forma bastante contida, não obstante tudo” – declarou Putin.

Foi como não tivéssemos sido testemunhas, através das televisões, de cargas policiais que fizeram vários mortos e centenas de feridos.

Aliás, estas declarações deram luz verde para Lukachenko para reiniciar mais uma onda de violenta repressão dos seus opositores.

Que depois Putin não se venha queixar de que as tendências russofóbicas aumentam rapidamente num país onde praticamente isso não existia.