O passado não regressa, mas a propósito do crescimento do Chega e da aliança com o PSD nos Açores, vale a pena fazer considerações sobre a orientação estratégica do maior partido da direita. O aparecimento e o crescimento do Chega são, em grande medida, o resultado do fracasso da estratégia de Rui Rio.
Quando Rio chegou a líder do PSD, a sua maior preocupação foi afastar-se da herança de Passos Coelho. Para isso, quis mostrar que o PSD não era um partido de direita. Mas confundiu o apelo a eleitores do centro com uma tentativa de purificação ideológica do partido. Ou seja, quis fazer do PSD um partido apenas “social democrata”, esquecendo que a vocação dos grandes partidos de poder é incluir várias famílias políticas e até militantes com tentações populistas, que existem em todos as famílias políticas.
Ninguém sabe se Ventura não teria acabado por sair do PSD, mas a verdade é que Rio não fez tudo o que estava ao seu alcance para o impedir. Rio achou que o Chega seria uma aventura passageira, sem futuro. Enganou-se, não só em relação a Ventura como ao risco de ignorar o eleitorado mais à direita que sempre votou no PSD. A estratégia de Rio aumentou a insatisfação entre o eleitorado de direita. Ventura é o principal beneficiado.
A questão central não é o PSD ter militantes como Ventura. Como disse, todos os partidos têm populistas e demagogos. Um populista no PSD, ou no CDS, está limitado pelas doutrinas, pela história e pelas heranças ideológicas. Ou seja, os partidos tradicionais servem de limites institucionais às tentações populistas dos seus militantes. O problema é deixar um populista talentoso, como Ventura, à solta a explorar os piores instintos dos eleitores mais insatisfeitos (e há muitos em Portugal). Como mostrou enquanto foi líder do PSD, Passos sabia unir toda a direita. Primeiro, uniu o partido. E depois, uniu o PSD e o CDS. Com ele na liderança do PSD, não teria havido o Chega nem, como diz um amigo meu, a IL. Rio deixou o PSD e a direita dividirem-se. Já terá percebido o erro que cometeu, porque agora sabe que é muito mais difícil lidar com uma direita dividida do que com um partido com várias tendências.
Mas há um ponto em que devemos ser justos com Rio. Passou mais de dois anos a aproximar-se do PS, a mostrar abertura para entendimentos com os socialistas. Foi acusado por muitos, e eu também fiz essa acusação, de pretender formar um bloco central. E durante dois anos, Rio ouviu Costa dizer que não e mais não. O PM até disse que no dia em que o governo dependesse dos votos parlamentares do PSD, seria o fim. Não foi apenas em 2015. Depois de 2019, Costa voltou a escolher as extremas esquerdas em vez dos sociais democratas, e com o PSD virado para o centro. Rio deu-lhe uma alternativa às extremas esquerdas. Costa não aceitou.
Até para um centrista como Rio, há um limite. Não se pode pedir a um líder do PSD que não dê um horizonte de poder ao seu partido. Tentou entendimentos ao centro com o PS, Costa recusou. Só lhe resta um caminho: unir toda a direita. No contexto actual da política portuguesa, não tem outra solução.
Há, no entanto, uma maneira de ajudar Rio na construção de uma maioria de direita que seja menos dependente do Chega: trabalhar para que o CDS e a IL cresçam. Todos os dirigentes destes dois partidos, e os independentes de direita que olham para o Chega como uma ameaça, politicamente só têm uma solução: ajudar os líderes do CDS e da IL a terem a melhor votação possível. Um dos principais objectivos de Ventura é acabar com o CDS. Espero que ninguém na direita liberal partilhe esse objectivo.
Há uns meses, escrevi um artigo aqui no Observador a defender uma terceira candidatura presidencial no espaço da direita, para aqueles que criticam o primeiro mandato de Marcelo mas não querem votar no Ventura. Seria uma óptima oportunidade para derrotar o candidato do Chega. A IL foi o único partido que mostrou coragem para apresentar o seu candidato.
Vivemos hoje na política portuguesa um período do triunfo dos radicalismos. António Costa abriu a portas aos radicais de esquerda para afastar Passos Coelho de São Bento, mesmo tendo perdido as eleições. Rui Rio preocupou-se tanto em afastar-se de Passos que permitiu o aparecimento de um partido radical à sua direita. Um dia, no futuro, os historiadores olharão para a segunda década do século XXI como aquela em que um líder moderado, sério e decente, foi afastado para abrir o caminho aos radicais.
Nada disso aconteceu por razões ideológicas. O PS de Costa e as esquerdas radicais uniram-se contra Passos porque sabiam que ele era o único com a coragem suficiente para reformar o país, de modo a beneficiar a maioria dos portugueses e acabar com os privilégios que as esquerdas acumularam durante décadas conquistando o aparelho do Estado. Não se opuseram a Passos por ser um radical ideológico. A verdade é que as esquerdas preferem um PSD fraco e um Chega mais forte a um PSD forte liderado por Passos a unir toda a direita. Essa foi a tragédia de 2015: a derrota dos moderados e a vitória dos radicais. Aqueles que celebraram o afastamento de Passos não têm qualquer autoridade para se queixarem da aliança de Rio com o Chega.