Vá lá Deus saber porquê – provavelmente por causa da actual zaragata no PS -, meteu-se-me na cabeça ler o que tem escrito, nos seus artigos do Diário de Notícias, Mário Soares. Se Mário Soares não continuasse a ser, à sua maneira, uma personalidade relevante, e particularmente influente entre os socialistas, o trabalho não faria de todo sentido. Mas como é, e como desempenhará certamente um papel na escolha do próximo líder do PS, vale a pena. É verdade que Mário Soares sofre de uma absoluta ausência de talento literário, o que não torna o exercício um prazer. Mas nunca ninguém alguma vez lhe pediu tal talento, nem ele dele alguma vez dependeu. Em todo o caso, percebe-se o que pensa. O que se segue é o condensado de alguns tópicos recorrentes nos seus artigos desde o princípio do ano. Deixo alguns comentários pessoais para o fim.
Comecemos apropriadamente pelos ódios. Três grandes ódios atravessam os seus artigos. Por ordem decrescente: Cavaco Silva, Durão Barroso e Angela Merkel. O Presidente da República é, e de longe, a sua detestação preferida. Cavaco aparece a Soares investido de características opostas que nele misteriosamente conseguem conviver. É ao mesmo tempo inerte e dotado de poderes quase sobrenaturais (por si só, por exemplo, conseguiu acabar com a cultura em Portugal). Durão Barroso encontra-se, na escala do mal, uns furos abaixo. Mas convém nunca esquecer que foi o anfitrião da cimeira dos Açores, onde os sinistros Bush, Blair e Aznar, que na escala do mal estão muito bem colocados, participaram. Na dita escala, quem anda lá muito à frente é Angela Merkel, que fala alemão e russo, línguas esquisitas na União Europeia, e que, Soares afiança-o, conhece muito bem Hitler, Estaline e Putin, restando saber em qual deles mais se inspira. As alusões subtis a afinidades ideológicas sinistras são, de resto, frequentes: Rajoy, convém lembrá-lo, é galego – tal como Franco.
A par dos ódios, há lugar para os amores. Alguns comedidos, outros desmedidos. Entre os primeiros contam-se, por exemplo, Sócrates e Hugo Chávez, políticos que lhe merecem os mais rasgados elogios. E que, Soares nota, eram amigos um do outro, como cabe a dois modelos de virtude. Os amores, por acaso, tendem a andar aos pares. Porque, na categoria dos amores desmedidos, Obama e o bom Papa Francisco, para quem a austeridade mata, igualmente muito se apreciam um ao outro.
Encerrado o tópico do bem e do mal nos seus aspectos mais gerais, passemos à vida empírica. Passos Coelho (que se apropriou do partido de Sá Carneiro, para o qual Soares só tem boas palavras; lembremos que não foi sempre assim) e Paulo Portas, que tem uma cara muito desagradável, têm os dias contados, pelo facto de andarem a dar dinheiro à troika e chefiarem um governo de corruptos que, pela primeira vez na história da democracia, instrumentalizou a RTP. De resto, desde o princípio do ano (e provavelmente antes), que não duram mais do que um mês ou dois. E, definitivamente, não passam de 25 de Maio (como Merkel). É que não passam mesmo. Se não for a bem, é a mal. E aqui seria preciso muito mais do que estas breves linhas para descrever a posição de Soares. Não por ela ser complicada (é simplicíssima), mas porque os efectivos apelos à violência, tenuemente disfarçados de conselhos de bom senso (“Quem o avisa, seu amigo é”), são recorrentes. Um exemplo, entre muitos: “Não gostaria nada de estar na pele dos que hoje nos governam, mesmo dos que procuram ser simpáticos e urbanos. Ou dos que julgam que podem fugir para o estrangeiro. Desta vez, com o povo furioso, corre-se o risco de não haver a tolerância do 25 de Abril de 1974.” A iminência de um “novo 25 de Abril” é muitas vezes sublinhada.
Passando da política para planos mais altos, chegamos à cultura e à Terra. A cultura, como já se viu, foi inteiramente destruída pelos poderes maléficos de Cavaco. Os diabinhos do governo deram, no entanto, uma ajuda, e mandaram para o Brasil Fernando Tordo, enquanto distribuiam dinheiro entre a troika e os corruptos. Quanto à Terra – Cavaco Silva pode descansar: nisso, aparentemente, não tem responsabilidade de maior -, Mário Soares cita previsões, com dia e hora marcadas, para o seu fim, embora por vezes oscile entre duas escolas de pensamento: a do apocalipse instantâneo e a da destruição gradual. Não cito.
Em matéria de política internacional, há duas ou três passagens onde se manifesta pouco apreço pela posição de Israel, e, é claro, além das inevitáveis alusões ao salvífico Obama, muitas palavras sobre a União Europeia, espatifada por Durão Barroso (“O Le Monde destruiu-o durante três números. Mais: arrasou-o!”) e Merkel. Soares expressa nostalgia pelos tempos de Helmut Schmidt, Olof Palme e outros. E, aparentemente sem se dar conta do difícil convívio das duas posições, faz simultaneamente a apologia da soberania e do federalismo.
Lendo, um após outro, mais de cinco meses de artigos semanais, uma pessoa constata, surpreendida, que, tirando o recurso sistemático a alguns chavões (“mercados usurários” e “gananciosos”), não há uma única reflexão sobre a nossa situação económica concreta. Suponho que dizer que as pessoas todas, menos os ricaços, andam a morrer de fome porque Passos Coelho e Portas se divertem, provavelmente entre grandes comezainas, a distribuir dinheiros pela troika e pelos seus corruptos apaniguados, não vale como análise política da nossa situação económica. Se estamos como estamos, para Soares, isso deve-se unicamente a um acto de vontade malévola dimanando de Merkel, via Durão Barroso, e aplicado pelos seus lacaios Passos Coelho e Portas, com o beneplácito do simultaneamente todo-poderoso (sem tal virtude, quem poderia, por si só, destruir inteiramente uma cultura tão pujante?) e cobarde, além de salazarista, Cavaco. Tudo é fruto das intenções malévolas dos “súbditos dos mercados”, contra as quais as forças do bem travam um denodado combate. Chávez, com todo o seu “bom senso”, travou-o, Sócrates também, e Obama e o bom Papa são a nossa esperança. Tentar descobrir alguma realidade nisto tudo é um esforço desesperante.
Mas se as pessoas pensam que Mário Soares diz isto porque está velho e desfasado do país e da realidade, desenganem-se. Primeiro, Mário Soares está vivíssimo e diz o que diz com intenções precisas. E a linguagem quase infantil que usa, acompanhada de doses maciças de pensamento a crédito, é tudo menos inocente: visa convencer e provocar acção. Em segundo lugar, muita gente – uma minoria, certamente, mas muita gente à mesma – pensa exactamente assim. Basta falar com uma pessoa ou outra e, quase por acaso, descobre-se: está lá tudo, até o desejo da violência. Se não exactamente à superfície, no máximo um milímetro ou dois abaixo do que se diz desprevenidamente. Se eu fosse do PS, a primeira coisa que fazia era demarcar-me claramente de Mário Soares. Como ele lembra: “Quem o avisa, seu amigo é”.