De tempos a tempos ressuscita a questão do conservadorismo vs. liberalismo, dividindo-se as opiniões entre aqueles que os pensam incompatíveis e aqueles que os têm como próximos. Em regra, uns e outros não costumam ser muito rigorosos nos conceitos, que não são unívocos e representam denominações singulares que ganhariam mais se fossem plurais, porque existem vários géneros de conservadorismos e também de liberalismos. Sobre esta observação pesa ainda a existência de uma terceira ideologia verdadeiramente distinta dessas duas, mas que frequentemente se confunde pelo menos com uma delas, com o conservadorismo. A esta chamaremos reacionarismo, porque se define mais por contradição do que pela afirmação de valores positivos. Quando de novo se debatem estes assuntos a propósito do futuro da Iniciativa Liberal e da sua liderança, se esse partido deverá pender mais para um liberalismo clássico ou para um liberalismo progressista, deixarei aqui a minha opinião, ainda que tenha a perceção da reduzida utilidade do exercício, porque há neste debate muito de trincheira e pouco de conhecimento racional e objetivo.

Predisposição conservadora e ação humana

Michael Oakeshott, o famoso filósofo conservador inglês do século passado, defendia a existência de uma «propensão conservadora (…) profundamente enraizada na natureza humana», porque, entre outros motivos e razões, «a mudança cansa (…) e gera medo». Em aparente oposição a esta forma de encarar a essência do comportamento humano, Ludwig von Mises, o célebre economista austríaco do século XX, argumentava que a condição natural do homem era a ação, isto é, «a vontade posta em funcionamento (…) para alcançar fins e objetivos». Porque, acrescentava, apenas agindo o homem pode aspirar a diminuir o desconforto existencial que é parte da sua condição natural.

Simplificando, podemos então afirmar que estas duas posições ontológicas preenchem o ponto de partida sobre o qual se constroem o pensamento político conservador e o pensamento político liberal modernos: um certo pessimismo, a que muitos chamam realismo, no caso do primeiro, e um otimismo contido, na segunda posição. Ao longo de décadas, os liberais recriminaram os conservadores pela sua suposta perspetiva excessivamente sombria da natureza humana e da vida em sociedade, enquanto estes acusavam os primeiros de se entusiasmarem demasiadamente com o mito rousseauniano do «bom selvagem». Conservadores defendiam-se dizendo que olhavam para o homem real, como ele efetivamente é, e contrapunham que o liberalismo criara a ficção racionalista do «homo economicus», uma superficialidade que não existe em nenhum lado. Liberais argumentavam, pelo seu lado, que os conservadores, enredados e perdidos que estavam nas teorias do poder e do Estado, desconsideravam o homem concreto e as suas necessidades e aspirações, e que observavam o mundo pelas lentes grossas e deformadas de Hobbes, donde tinham nascido os totalitarismos e os despotismos modernos. Sucede que nem uns nem outros pensam deste modo caricatural, e que os paradigmas de Oakeshott e Mises não estão assim tão longínquos um do outro como se poderia supor.

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Conservadorismo, Liberalismo, Reacionarismo

O famoso texto de Hayek – Por que não sou  Conservador – agravou esta separação e tornou, por algum tempo, ainda mais difícil reaproximar posições. Crentes no que o filósofo e economista austríaco escrevera, alguns liberais confessaram-se irremediavelmente inconciliáveis com o conservadorismo, porque este seria imobilista, defensor dos privilégios e, ao contrário da ideologia que propunham, inimigo do progresso e da igualdade de oportunidades dos indivíduos. O equívoco resulta, contudo, da confusão que costuma estabelecer-se entre o pensamento conservador, iluminista e democrático, e o pensamento reacionário avesso à modernidade que o Iluminismo nos trouxe e na qual ainda hoje vivemos. Conservadorismo é muitas vezes entendido como reacionarismo, frequentemente até por alguns conservadores em estado de aparente negação. Por conseguinte, diria que é necessário tornar claro que liberalismo e conservadorismo são, de facto, duas ordens de grandeza ideológica distintas, embora não sejam incompatíveis e até convirjam reiteradamente em muitos pontos. Em contrapartida, parece-me que não há qualquer hipótese de aproximação entre o pensamento reacionário e o conservador. A bem deste último, sublinhe-se.

Na verdade, era no pensamento reacionário que, salvo melhor opinião, Friedrich Hayek verdadeiramente pensava, quando acusava o conservadorismo de «rejeitar novos conhecimentos» e de «desconfiar de tudo o que é novo». O mesmo deveremos dizer quando ele escreve, numa outra parte daquele mencionado texto, que o conservadorismo considera existirem nas sociedades humanas «indivíduos reconhecidamente superiores, cujos valores, padrões e posições precisariam de ser protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do que os demais». Nada disto faz parte do pensamento conservador, nem são estes valores que os autores que são as suas principais referências defenderam ou defendem, sejam os do século XVIII e XIX, como Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Lord Acton, Alexandre Herculano, ou os do século XX e XXI, como o já acima citado Michael Oaekshott, mas igualmente Raymond Aron, Russel Kirk e Roger Scruton. Nenhum deles pretendeu regressar ao passado, tão pouco manter o que quer que seja na ordem social por temer a inovação, o conhecimento e o progresso. Tão pouco dimensionaram o Estado como uma alcova para elites sociais e económicas.

De facto, Burke, tido como o pai do moderno conservadorismo, exaltava a Revolução Gloriosa no que ela preservara das tradições inglesas da liberdade que os Stuart haviam ameaçado. E condenava a Revolução Francesa pelo «espírito geométrico e racionalista» com que tentou apagar tudo o que vinha de trás e construir uma sociedade nova, à qual, no século XX, outros totalitarismos chamariam o «Homem novo». A sua perspetiva sobre a evolução política e social, a um tempo liberal e conservadora, entendia que «um Estado sem meios de empreender alguma mudança, fica sem meios para se conservar». E considerava que, tomando o seu país por exemplo, «naquilo que melhoramos nunca somos totalmente novos e no que conservamos nunca ficamos totalmente obsoletos». Longe estava, portanto, de temer a mudança e a inovação. O que condenava eram as ruturas distópicas da ordem política e social.

O próprio Oakeshott não recusava a inovação e distinguia muito bem a interioridade de cada um, onde residia a «predisposição conservadora», com a natureza e as funções do governo e do Estado. Na sua perspetiva, o que importava era que o governo não impusesse «aos outros as suas crenças» e que criasse e soubesse manter normas jurídicas gerais e abstratas dentro das quais cada um pudesse prosseguir livremente a sua  existência e fazer as suas escolhas pessoais. Para Oakeshott, a predisposição conservadora não tinha, por conseguinte, uma transposição necessária para a política executiva, sendo antes um critério individual para as opções e orientação de vida de cada um. O fundamental da política de um governo conservador estaria, desse modo, em permitir que as pessoas pudessem escolher e seguir livremente as suas regras de conduta, em vez de ser o Estado a criá-las e impô-las. Ou seja, a Grande Sociedade, que Hayek defende em inúmeros pontos da sua vasta obra filosófica, conformada por regras gerais e abstratas que permitem que cada um escolha o que quiser para si, respeitando as opções dos outros.

A tradição no pensamento conservador e no pensamento liberal

Igualmente não pode colher a crítica de que os conservadores são defensores da tradição, ao contrário dos liberais, e que esta é uma forma de imobilismo que conduz à estagnação social. Trata-se de mais um equívoco que o próprio Hayek desfaz no livro The Constitution of Liberty, ao escrever que «por mais paradoxal que possa parecer, provavelmente, uma sociedade livre e bem-sucedida será, em grande medida, uma sociedade ligada às tradições». Porquê? Responde Roger Scruton, um assumido conservador dos nossos dias: «as tradições sociais (…) são formas de conhecimento. Contêm os resquícios de muitas tentativas e erros conforme as pessoas tentam ajustar a própria conduta à das demais». Ou, de novo Hayek, que entende que «a tradição e o costume» representam «a experimentação de muitas gerações», que uma sociedade livre deverá respeitar. Por conseguinte, em vez de constituírem um fator de imobilismo social, as tradições são fonte e veículo de transmissão de conhecimento social, experimentado e selecionado ao longo da história, que as sociedades humanas e os indivíduos ganham em preservar, em vez de os enjeitarem como nefastas, como propunham a generalidade dos philosophes das luzes de França.

Estado e governo

A distinção entre liberais e conservadores precisa, então, de ser encontrada noutros lugares. É o que tenta fazer Roger Scruton, ao criticar a ideia supostamente liberal da autossuficiência do mercado, como regulador e ordenador social espontâneo absoluto e distribuidor equitativo de prosperidade e riqueza, ideia que os conservadores não aceitam sem um “estado de direito imparcial” capaz de precaver as suas insuficiências. Mas será este, de facto, um ponto tão acentuado de divergência? Também o não creio, porque os liberais não afirmam que o mercado estabelece um equilíbrio social absoluto, que, de resto, só existiria num mundo estático e imobilizado, cuja existência eles não concebem. Mas o mercado livre é, apesar das suas muitas ineficiências, ainda assim a melhor forma de distribuir riqueza, desenvolver uma sociedade e criar mais e melhores oportunidades para um maior número de seres humanos. Bem melhor do que a redistribuição estatal e o intervencionismo económico, que sempre redundam em dirigismo social, ideia o que os conservadores também não parecem refutar,

Quanto à hipotética “desnecessidade” do Estado e do governo, bastará atender ao que Ludwig von Mises escreveu, no Human Action e noutras obras, afirmando que, sem eles, «a cooperação social pacífica seria impossível». Ou o que disse o próprio Hayek, a propósito da inevitabilidade da coerção estatal, que esta só deverá ser excluída «no seu grau mais intenso (…) aquela (coerção) que, quando aplicada, impede um indivíduo (…) de prosseguir um objetivo importante para si». Naturalmente que, para os liberais clássicos, a ação do Estado necessita de ser enquadrada pela Lei e pela Constituição, tendo estas de respeitar (pelo menos) os direitos fundamentais lockeanos. Ou seja, tem de ser um Estado de direito, como desejam os conservadores. No fim de contas, foram os liberais, em estreita conexão com os conservadores, que historicamente o criaram.

Ordem moral

Tão pouco a convicção da necessidade de uma ordem moral que subjaza a uma ordem social livre e a determine, que muitos identificam com um conservadorismo religioso e clerical, poderá servir de critério diferenciador em relação ao liberalismo, porque nem sempre esta posição é apanágio dos conservadores, como frequentemente o encontramos até em certos liberais mais radicais. Vejamos.

Por um lado, Oakeshott é muito claro a esse propósito, enjeitando a dependência das ideias conservadoras para com uma qualquer ordem moral e religiosa: «as linhas que formam a figura da predisposição conservadora na política», escreve ele, «não têm nada a ver com leis divinas ou ordem natural, nem com moral ou religião». Em contrapartida, muitos liberais clássicos entendem que a coerção do Estado só poderá ser substituída por fortes valores morais e até mesmo religiosos, indo muitos deles buscar à primeira parte da Democracia na América, de Tocqueville, inspiração e fundamentos para as suas convicções. Contudo, Tocqueville louvava o valor das religiões e das suas igrejas na criação da democracia e de uma ordem social pacífica no novo país do continente americano, não pela imposição de uma ordem moral e religiosa coincidente com a política, o que não existia, mas porque elas, por serem diversas, diferentes, mas igualmente respeitadas e todas operando segundo a lei, não se procuravam aniquilar reciprocamente, como haviam feito em séculos de guerras religiosas europeias.

De resto, ao longo da história do liberalismo, abundam os exemplos de proximidade entre as ideias liberais e posições morais e até religiosas. Adam Smith escreveu uma extensa (mas didática) Teoria dos Sentimentos Morais. Gladstone, expoente maior do governante liberal oitocentista, era um homem profundamente religioso. E mesmo um libertário como Walter Block acabaria por se considerar um «conservador cultural», afirmando que a sociedade sem Estado que defende não pode sobreviver senão com uma fortíssima consciência moral e religiosa que se imponha aos excessos dos indivíduos deixados à solta, sem coerção estatal. 

Reacionarismo

Assentando na proximidade, não necessariamente numa coincidência, do conservadorismo com o liberalismo, sobretudo com o de tradição clássica, a que espécie de “conservadorismo” se referia então Hayek na sua diatribe contra essa forma de pensamento? Eu creio que o filósofo austríaco confundiu o conservadorismo com o reacionarismo, filosofia política com ancestrais, pressupostos, predisposições e conclusões muito diversas, ou até mesmo antagónicas às do pensamento conservador. Falamos numa doutrina nascida de autores como Louis-Gabriel-Ambroise, visconde de Bonald, Joseph  de Maistre, Frédéric Le Play ou, em Portugal, Pascoal José de Mello Freire dos Reis e António Sardinha. Embora com divergências entre si, todos defenderam, feita a depuração do acessório, um absolutismo disfarçado de tradicionalismo, alguns deles, como Pascoal José, camuflado até de progressismo científico. Essa ideologia pretende que a ordem social tem fundamentos transcendentais, dos quais o príncipe é o único recetor e intérprete por vontade divina (direito divino dos reis), sem qualquer mediação popular, isto é, democrática. Esta visão das coisas foi abalroada pelo Iluminismo, que laicizou a política e preparou o caminho para as regras democráticas desse jogo complexo que é o governo da pólis. Quando Sardinha atacava, n’A Teoria das Cortes Gerais, «a mentira das constituições escritas», seguindo o trilho aberto por de Maistre, que as considerava «um dos maiores erros do século», o que os incomodava a ambos era a migração da soberania do rei para a nação, que o contratualismo político liberal do constitucionalismo oitocentista concretizou. Ou seja, os fundamentos do que mais tarde viria a ser o regime democrático e liberal e do Estado de direito, que liberais e conservadores defendem.

A animosidade ao mundo nascido no Iluminismo é, portanto, timbre do pensamento reacionário mas não do conservador. Este último vive nele, aceita-o, e muitos dos seus pensadores foram arautos ou mesmo protagonistas dessa extraordinária transformação. Os liberais não deverão, por conseguinte, confundir estas duas formas de expressão política, se quiserem respeitar a sua própria tradição intelectual, que muitas vezes coincidiu com a conservadora. Até porque a sua correta identificação torna-se cada vez mais essencial para ler devidamente o mundo de hoje, no qual os valores do Iluminismo são diariamente postos em causa na guerra da Ucrânia e pelos muitos populismos que entre nós emergem.