Há uns anos John Galliano, embriagado numa noite parisiense, importunou uns casais da mesa do lado, supondo as mulheres judias, proclamando que adorava Hitler e que os antepassados das ditas senhoras deviam ter morrido gaseados. Galliano à época era o designer da Christian Dior e foi prontamente despedido.
Já havia blogues e redes sociais, pelo que o despedimento foi visto como um atentado à liberdade de expressão e um avanço do politicamente correto. Galliano merece alguma compreensão: foi mais tarde sentenciado por insultos de cariz racialista. E terminou vítima do puritanismo do mundo moderno. Afinal, quem nunca disse imbecilidades depois de umas doses avantajadas de bebidas espirituosas? Mas os modernaços progressistas acreditam nas penas eternas, nos exílios definitivos, enfim, no ressentimento interminável. John Galliano nunca foi perdoado nem recuperou o prestígio nas grandes casas de moda – nem nas vendas.
No entanto, mas, não obstante, contudo, a Dior fez bem em despedir o desbocado Galliano. Primeiro: uma empresa não é um clube de debate, nem uma tertúlia, onde todas as opiniões são aceitáveis. Uma empresa produz algo ou presta certos serviços, precisando, para ter sucesso, de agradar aos clientes. Segundo, e continuando: Galliano, com as tiradas anti semitas e anti asiáticas ofendeu os clientes Dior – desde logo os muitos clientes judeus e asiáticos endinheirados, a que se somam os que torcem o nariz ao anti semitismo. Donde, prejudicou a empresa e mereceu o despedimento.
Ora bem, devemos aplicar estes conceitos basilares de gestão ao tratamento que as empresas dão às mulheres. Há pouco tempo um empregado da Google produziu um memorando desconchavado que fazia alegações graves sobre a capacidade profissional das mulheres. Claro que o autor é um jovem que, aparentemente sem estar alcoolizado, inventou um doutoramento em biologia para por no CV e anda pelo twitter a contar como são divertidos certos pormenores linguísticos do Ku Klux Klan. O memo arma ao científico, cheio de assunções abusivas sobre os artigos científicos que cita, outros são datados e muitos – muitos – links para a wikipedia. (Avassalador.) Para cúmulo, a natureza inclemente não lhe deu o talento e a originalidade de Galliano.
Com tanta falta de qualidades, James Damore – é o nome da infeliz personagem – sem surpresa se transformou no ídolo dos machistas das redes sociais, dos sites, do Youtube. A aldrabice que escreveu foi levantada ao nível da ciência mais cristalina por esta arguta clique.
A Google não escorregou no logro e correu a despedi-lo. Apesar da mágoa profunda dos defensores de Damore, de resto exibida com aquela qualidade que, em sendo usada por mulheres, costumam apelidar de ‘histeria’, a Google fez também muito bem. E não só por, como resulta evidente, o rapaz ser um cretino. Mais uma vez, um empregado de uma empresa ofendeu os seus clientes e utilizadores. Uma Google não pode sancionar opiniões tão aparvalhadas sobre cerca de metade dos seus utilizadores.
E se a esmagadora maioria das mulheres – mais os homens decentes que não querem discriminações profissionais para as suas mulheres, namoradas e filhas – começasse a usar, quando possível, outro motor de busca? Ou retirassem massivamente o google de página de entrada no browser do computador, diminuindo visualizações? Ou migrassem do Gmail para outro prestador de serviço de correio eletrónico? Ou boicotassem novos serviços que a Google venha a oferecer? Em todo o caso dêmos os pêsames à internacional sexista por tanta falta de discernimento na hora de escolher mascotes.
Por cá, há pouco tempo, Luís Onofre, criador de sapatos para mulheres, criticou-nos devido ao absentismo feminino na indústria do calçado. Não houve qualquer contextualização – mulheres de situação económica frágil que não têm rendimentos para empregadas que lhes tomem conta dos filhos doentes; maridos que se recusam a participar na sua parte das obrigações familiares e domésticas; problemas de saúde resultantes da soma do trabalho na fábrica com a totalidade do trabalho em casa. Menos ainda propostas de soluções. Li apenas crítica, como se as mulheres fossem umas valdevinas irresponsáveis sempre prontas à gazeta ao trabalho.
A sorte de Luís Onofre é estar num país apático que lida bem com destrates (veja-se a intenção de voto em Isaltino Morais, a descontração dos lisboetas com o manhoso ajuste direto de Fernando Medina à Teixeira Duarte ou a inexistência de responsabilidade pela morte de 66 pessoas em Pedrógão). E exportar sapatos para onde não percebem disparates em linguajares estranhos e periféricos.
É uma estratégia de marketing genial: insultar o profissionalismo do grupo que lhe compra os sapatos. Em que curso de Gestão terá aprendido teoria tão inovadora? Escapou-lhe que as mulheres que pagam umas centenas de euros por um par de sapatos estão muito disponíveis para se solidarizarem com as mulheres que os fabricam?
Sandra Clemente recomenda que não se consuma de empresas que discriminem mulheres. Já eu, carregada de mau feitio, insisto em não gastar o meu dinheiro e tempo com empresas e produtos que insultem os grupos demográficos a que pertenço. A Google excisou o problema. John Galliano já se penitenciou (pelo que mantenho devotamente a minha divina saddle bag de ganga dos seus tempos na Dior). Luís Onofre, paradigma da excelência nacional, nem se apercebeu.
Nota: a Porto Editora decidiu recolocar à venda os cadernos de atividades que a estatal CIG tentou censurar. Tudo está bem quando acaba bem: são os consumidores que vão decidir se compram cadernos com temáticas mais aliciantes para rapazes ou para raparigas ou se escolhem unissexo. Consumidores unidos jamais serão vencidos.