Uma das mais tocantes reacções espontâneas ao surto do covid-19 entre nós teve lugar pelas 22h do passado sábado — quando milhares de pessoas acorreram às janelas de suas casas, creio que sobretudo no Porto e em Lisboa,  para saudar e aplaudir os trabalhadores do sector da saúde (público e privado) que diariamente cumprem o seu dever arriscando a própria vida. Foi uma tocante demonstração de civismo tranquilo e civilizado, que pode ser útil contrastar com tendências tribais, ainda que estas tenham sido até agora felizmente ténues entre nós.

Uma dessas tendências tribais exprime-se na partidarização do discurso sobre a crise actual, atacando o Governo e os responsáveis das diversas instituições, como se fossem eles os culpados pela pandemia em curso. Outra tendência tribal tem consistido em atacar o pluralismo partidário ocidental e elogiar o chamado “sentido colectivo” asiático, incluindo elogios medíocres à ditadura comunista chinesa.

Pode ser útil observar que os dois tribalismos de sentidos aparentemente opostos— o partidocrático e o anti-partidos — assentam em pressupostos comuns e numa comum cultura política primitiva. No centro desta comum cultura política primitiva está a ignorância de que a liberdade e o pluralismo — quando e onde triunfaram e persistiram — assentaram sempre na obediência voluntária e espontânea a regras gerais de boa conduta. Foi a obediência a regras gerais de boa conduta que permitiu às sociedades livres recusar a servil obediência a comandos específicos ditados arbitrariamente pelos poderes de plantão.

Nos ‘bons velhos tempos’ esta capacidade de obedecer a regras gerais, associada à insubmissão contra ordens arbitrárias de comando, era conhecida por “gentlemanship”. Edmund Burke (1729-1797) argumentou que, numa sociedade de pessoas livres, as maneiras são mais importantes do que as leis. E observou certeiramente que todas as sociedades precisam de algum poder de controlo — quanto menos ele vier de dentro, de cada um de nós voluntariamente, mais ele virá de fora, de um poder autoritário centralizado.

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Esta observação de Edmund Burke é absolutamente crucial e está na base do conceito de “liberdade ordeira” ou “liberdade sob a lei” que distingue os regimes demo-liberais civilizados das culturas políticas arcaicas que oscilam entre a revolução e a contra-revolução, entre o abuso e a tirania.  Por outras palavras, sem obediência voluntária a regras gerais de boa conduta, estamos condenados à triste e perpétua oscilação entre o abuso e a servidão.

Vem tudo isto sobretudo a propósito da importância da auto-disciplina e da serenidade — sempre desejáveis, mas particularmente quando enfrentamos uma pandemia de contornos ainda pouco conhecidos. Devemos começar por reconhecer que ninguém ainda conhece a fundo o comportamento do vírus covid-19 e, sobretudo, os meios de o eliminar. As medidas de contenção que estão a ser gradualmente anunciadas correspondem ao melhor do nosso falível conhecimento a cada momento. Devem por isso ser voluntariamente adoptadas com serenidade — e creio que em geral este tem sido o caso entre nós.

Isto não deve ser confundido, todavia, com qualquer tipo de servilismo relativamente a um qualquer alegado “partido único chamado Portugal”. Somos uma orgulhosa democracia pluralista e não vamos agora adoptar os tiques mono-partidários  servilmente aplaudidos em culturas políticas primitivas. Os órgãos de comunicação social desempenham aqui uma papel fundamental — que têm honrosamente desempenhado — e devem continuar a servir o seu duplo mandamento: os factos são sagrados, a opinião é livre.

Simultaneamente, os partidos políticos devem compreender a situação excepcional que atravessamos e devem assumir (como em geral têm assumido) uma atitude de coligação nacional para enfrentar a pandemia. O Presidente da República e o Primeiro-Ministro devem dar o exemplo, como aliás felizmente têm dado. Mas talvez passos mais enfáticos no sentido de um coligação nacional pudessem ser dados.

Um livro recente, que já aqui citei, ilustra eloquentemente esta dupla capacidade de uma democracia pluralista assumir, por um lado, um espírito de coligação nacional e, por outro lado, manter um saudável pluralismo e uma crucial liberdade de expressão. Refiro-me a Attlee and Churchill: Allies in War, Adversaries in Peace, de Leo McKinstry (London: Atlantic Books, 2019).

O livro é um pouco longo (758 páginas…) mas vale a pena. Recorda-nos a epopeia da ancestral democracia britânica que defendeu sozinha a democracia liberal em 1940, com uma coligação nacional entre os três partidos (Conservador, Trabalhista e Liberal). A seguir, em Junho de 1945, o líder da vitória nacional, Winston Churchill, perdeu as eleições e tranquilamente passou a líder da Leal Oposição de Sua Majestade.

Foi dessa época exemplar de coligação pluri-patidária nacional para defender a mais antiga democracia parlamentar que herdámos as clássicas expressões (hoje ignoradas pelas chamadas ‘redes sociais’): “Stiff Upper Lip” e “Keep Calm and Carry On”. O cabo Hitler e o camarada Stalin, que desprezavam o pluralismo burguês do Reino Unido, nunca chegaram a perceber a resistência vitoriosa da unidade nacional pluralista da democracia parlamentar britânica.