Um dos cuidados inerentes ao processo de adoção diz respeito à forma como as crianças, adolescentes e famílias com uma história de adoção são integradas na escola. Neste texto comentamos os testemunhos de duas famílias sobre o acolhimento dos seus filhos adotivos pela escola: a família de Rita e José que adotaram uma filha com seis meses e um filho com dois anos e três meses, em duas etapas diferentes das suas vidas; e a família do Gonçalo e Miguel que adotaram primeiro um filho com quatro anos e, cinco anos depois, dois irmãos, uma menina de seis anos e um menino de nove anos.

Os testemunhos destas duas famílias reportam-se a vivências no contexto escolar e ao seu sentimento de tristeza e angústia em relação ao desconhecimento que os profissionais da comunidade educativa têm acerca da história de experiências difíceis vivenciadas pelas crianças e adolescentes adotadas, de adversidade e trauma, demonstrando que, nem sempre, os contextos educativos estão preparados os acolher. Como referiu a Rita: “aponto o desconhecimento das dificuldades que estas e as suas famílias enfrentam pelos vários setores da sociedade com que as crianças interagem: o caso das escolas (…) relativamente à integração de crianças com histórias de adoção na sua escola, com todas as suas necessidades de acompanhamento e de atenção, creio que podem ser muito facilmente vítimas destas duas situações: em primeiro lugar, da ideia de que a criança é uma sortuda e tem tudo para se sentir feliz e “agradecida” e, em segundo, de algum nível de cansaço dos profissionais que com ela trabalham diretamente”. No seu testemunho, o Gonçalo e o Miguel referiram-se aos desafios da adaptação a uma nova realidade onde se inclui a escola: “A chegada de uma criança a uma família, pela via da adoção, é um momento de enorme felicidade, mas coberta de desafios e angústias para todas as pessoas envolvidas, mas principalmente para as crianças que, uma vez mais na vida, terão que adaptar-se a uma nova realidade. E isto acontece em diversas dimensões da vida da família, e da criança, nomeadamente na escola onde, infelizmente, a nossa experiência nem sempre correu como desejávamos e muito menos como as nossas crianças desejavam e, principalmente, mereciam”.

Frequentemente, existem ideias, mitos, preconceitos, crenças e discursos socialmente construídos sobre a adoção, que influenciam negativamente a atuação da sociedade em geral e dos profissionais da educação em relação às crianças, adolescentes e suas famílias adotivas, o que tem um impacto muito significativo no seu desenvolvimento e bem-estar. A Rita e o José contaram-nos a sua experiência neste domínio: “Normalmente, quando pessoas se apercebem que uma família é constituída pela via da adoção, dizem logo a frase em que todos provavelmente pensam nestas situações: “Que sorte tiveram estes miúdos!”. Mas frequentemente, por detrás dessa “sorte”, estas crianças e jovens possuem histórias de perdas, de traumas e de lutas pela construção da sua identidade, por entre passados diversos, que se ligam de forma complexa. Normalmente não fica tudo bem, mal um menino ou uma menina chega a casa da sua nova família, iniciando-se aí algumas dificuldades e desafios”. Gonçalo e Miguel acrescentaram: “Havia um ambiente de alguma tensão, essencialmente porque a nossa criança não tinha competências para tarefas que pareciam básicas para a idade dela e a professora insistia com expressões como “a criança também tem que fazer um esforço”, ignorando por completo o percurso e debilidades que a história de vida lhe provocou”.

Provavelmente, muitos educadores não terão estudado o tema da Adoção na sua formação académica e, como tal, devem sentir dificuldades em lidar com os processos adotivos dos seus alunos. A Rita e o José são da opinião de que em Portugal: “Existem documentos informativos que pretende ajudar pais e professores a melhor compreender os desafios que as crianças com histórias de adoção enfrentam na escola. No entanto, e face às exigências do quotidiano escolar, a sua aplicação pode ficar comprometida. Assim, proporia que se tomasse consciência da necessidade de haver formação formal e obrigatória para os profissionais da escola que trabalham com crianças com histórias de adoção. Formação, para além das conversas informais que os pais vão tendo. Assim como já ocorre, exatamente nas escolas, com situações particulares de saúde física, por exemplo diabetes, para as quais os docentes recebem formação específicas de intervenção, numa primeira linha de socorro. E assim como já ocorre também nos próprios Tribunais de Menores, para os profissionais estarem sensibilizados e aptos a trabalhar com estas crianças”.

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A ausência de conhecimento sobre os diversos aspetos da adoção tende a gerar ideias preconcebidas que podem influenciar negativamente a relação entre o educador/professor e a criança ou adolescente adotada, tal como nos relataram o Gonçalo e Miguel: “Um dia, depois de uma troca de mensagens sobre este tipo de situações, e mantendo a professora uma atitude de descarte constante da responsabilidade, a nossa criança chegou a casa com a árvore genealógica para completar, com nome da mãe e nome do pai. Por termos entendido tratar-se de uma situação deliberada, decidimos que não faria o trabalho e informamos por e-mail a justificação de não ter feito e que nos surpreendia este trabalho quando a professora conhecia a nossa família”.

Infelizmente é comum que a representação social da família, principalmente nos manuais escolares, seja estereotipada, definida a partir de uma matriz biológica, sem que se reconheçam outras possibilidades de configurações familiares.

A visão predominante de família é preconceituosa idealizando-a como sendo composta por pai, mãe e filhos. Mas a realidade é bastante diferente, não existe apenas um único modelo de família, as famílias podem ser constituídas por uma mãe e por um pai, por dois pais ou por duas mães, por madrastas ou padrastos, em coparentalidade, por famílias alargadas, por avós e avôs, por tios e tias, por irmão e irmã e por famílias reconstituídas, reagrupadas, adotivas e de acolhimento. Estes são alguns exemplos, de algumas configurações familiares, entre tantas outras possibilidades de diversidade de famílias.

O sentimento das famílias relativo à falta de apoio e incompreensão dos profissionais do contexto escolar face às dificuldades dos filhos, foi-nos referido pelo Gonçalo e pelo Miguel: “O desconhecimento e a falta de preparação com que, tantas vezes, nos deparamos na comunidade escolar, fazem-nos ficar à mercê da sorte. A sorte em relação às pessoas que povoam esta comunidade, ao professor/a, à permeabilidade que têm à nossa intervenção, enquanto família e pessoas, à partida, mais esclarecidas sobre as necessidades específicas destas crianças”.

Neste âmbito, é muito importante que a família informe a escola de que a criança ou adolescente foi adotada, pedindo-lhe que mantenha este tema confidencial, garantindo que esta seja sempre respeitada pelos colegas, funcionários e professores da escola, evitando constrangimentos e situações vexatórias, que possam colocar em conflito as orientações dos pais e aquelas apresentadas pelos educadores ou professores. Como nos descreveram o Gonçalo e o Miguel: “E aqui, a nossa experiência diz-nos que esta disponibilidade pode fazer toda a diferença no sucesso do percurso da criança na escola. Quando tivemos o nosso primeiro filho, tivemos várias situações que nos obrigaram a intervir. Quando adotei o nosso primeiro filho, houve um dia que cheguei à escola e a educadora do pré-escolar explicou-me que, nesse dia, tinha tido a necessidade de explicar à turma que ele era adotado. Ora esta frase está errada, à partida, porque essa é uma decisão que, em circunstância alguma, está ou pode estar nas mãos do docente. Esta é uma decisão que depende, na totalidade, à família (nomeadamente pela avaliação sobre a disponibilidade da criança para o fazer). O nosso filho tinha 5 anos e foi colocado em frente a uma turma de 24 crianças, entre os 3 e os 6 anos e a educadora disse que ele não tinha mãe porque tinha sido adotado só por um homem e que as crianças adotadas, são crianças cujas famílias não querem ou não podem ficar com elas e que vão para uma casa à espera que uma família as vá buscar. Esta descrição absolutamente lamentável, fez com que uma menina de quatro anos comentasse: “então é como os cães”. Naturalmente que esta criança apenas comentou a partir de uma dedução sobre a forma como o assunto foi exposto”. É para evitar estas situações que a Rita e o José propõem que a escola deve proteger as crianças e os adolescentes adotados da exposição a situações traumáticas: “É preciso, nomeadamente, acautelar conjuntamente a realização de alguns trabalhos sensíveis, como por exemplo, recolha de informações sobre primeiras palavras, os primeiros passos, o nascimento do primeiro dente ou características genéticas”.

A escola deve proteger as crianças e os adolescentes adotados de situações de preconceito, da discriminação por parte da comunidade escolar e da exposição da sua vida privada. Todas as escolas deveriam evitar que a criança ou adolescente e suas famílias adotivas sofram, funcionando como o espaço de aprendizagem que é, o local apropriado para uma reflexão crítica sobre a realidade social, reconhecendo, desmistificando e respeitando as diferenças entre os alunos e aceitando a pluralidade de novas e diferentes configurações familiares, contribuindo de forma significativa para o respeito pelas diferenças e para a garantia dos direitos sociais. O Gonçalo e o Miguel exemplificaram as consequências da ausência desta condição: “Mais tarde, esse nosso filho entrou no 1º ciclo e em “estudo do meio” recebeu uma folha para completar a sua árvore genealógica, onde constava “nome da mãe” e “nome do pai”. Nessa altura, ele já tinha dois pais e isso perturbou-o de tal forma que a agressividade fez-se notar ao longo de vários dias sem que, inicialmente, conseguíssemos identificar a causa. A professora, muito atenta, contactou-nos e, em conjunto, percebemos que um “simples papel”, o tinha desestabilizado por completo. Na verdade, este papel dava-lhe indicações claras sobre a forma como uma família deveria ser. E a dele não se encaixava nesse modelo”.

Muitas vezes os adultos usam descrições preconceituosas sobre crianças e adolescentes que foram adotadas, rotulando-as, por falta de conhecimento e de sensibilidade para com as suas necessidades, comportamentos e histórias de vida. O Gonçalo e o Miguel têm disso uma experiência concreta: “Infelizmente, uma criança adotada e a sua família têm sempre que dar excessivas explicações à escola e o que sentimos, muitas vezes, é que não somos ouvidos e que é mais fácil rotular uma criança como “preguiçosa”, “pouco esforçada”, “manhosa”, do que investir 5 minutos a tentar conhecer o mundo interior daquela criança e ouvi-la, de facto, com o intuito de a compreender”.

Estes pais adotivos relataram também a importância do contacto e diálogo com os educadores, professores e diretores de turma, sensibilizando-os para a necessidade de compreender os percursos vivenciais especificos destas crianças e adolescentes em contexto escolar e de proceder à adaptação das práticas pedagógicas em conformidade. Como referiram o Gonçalo e o Miguel: “Uma breve conversa com a professora, fê-la compreender, de imediato, a necessidade de adaptar a sua atuação, não só pelo percurso da criança, mas também pela sua configuração familiar. E, a partir desse dia, foi a nossa melhor aliada, ao longo de 4 anos. E esta foi a maior prova de que, quando se quer, é possível chegar a estas crianças e de que alguém que está, verdadeiramente, empenhado, pode fazer toda a diferença na vida dos nossos filhos e das nossas filhas”.

A Rita e o José consideram que a escola tem um papel primordial na preservação do bem-estar das crianças e os adolescentes adotados, reconhecendo o envolvimento de alguns profissionais e a importância das relações colaborativas entre a escola e a família: “A escola é uma instituição basilar na sociedade. Muitos são os profissionais que a ela se dedicam com muito afinco. Pessoas com sentido de missão (…) Muito importante é a colaboração estreita entre escola e família, na construção de percursos escolares positivos”.  Ou, como referiram o Gonçalo e o Miguel, precisamos de uma comunidade educativa informada e conhecedora das necessidades de cada criança: “De facto, e pela nossa experiência, um professor não pode ser aquele que só leciona, um professor é aquele que procura que a criança esteja bem para poder aprender, procurando adaptar o ensino às verdadeiras necessidades de quem tem à frente”.

As políticas educativas devem estimular que as escolas e as comunidades educativas promovam o “direito à diferença” e valorização da “diversidade” como um instrumento para a educação, e não como um obstáculo. Neste sentido, o Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, “estabelece os princípios e as normas que garantem a inclusão, enquanto processo que visa responder à diversidade das necessidades e potencialidades de todos e de cada um dos alunos, através do aumento da participação nos processos de aprendizagem e na vida da comunidade educativa” (n.º 1 do artigo 1.º).

Não são apenas as escolas e a comunidade educativa que devem ser inclusivas, mas todos os serviços e instituições que contatam com as crianças, adolescentes e famílias adotadas. Precisamos de uma sociedade que seja verdadeiramente inclusiva das situações de adoção, valorizadora da diversidade de histórias de vida e de configurações familiares. Como testemunharam a Rita e o José “é importante que os espaços de serviços públicos que interagem com estas crianças e jovens tenham perceção do cuidado que deve existir nessas interações. Serviços como conservatórias, centros de saúde e, sobretudo, no local onde passam a maior parte do seu dia: a escola”.

O Gonçalo e o Miguel reconhecem o esforço que alguns profissionais nas escolas têm realizado nesse sentido, mas também que ainda é preciso generalizá-lo a todas as escolas: “É verdade que hoje temos experiências substancialmente mais positivas e, por isso, agradecemos profundamente a todas as pessoas que se dedicam ao ensino, de alma e coração. Mas entendemos que a escola tem de ser um apoio e não uma roleta, que nos deixa nas mãos da boa vontade”.