Na quinta-feira passada, João Miguel Tavares publicou uma crónica intitulada “Bem prega o Papa – mas será que a Igreja escuta?” (Público, 28-2-2019).
Antes de mais, devo dizer que sou um leitor assíduo dos textos de João Miguel Tavares, com quem tive o prazer de apresentar um livro da editora Paulus. Reconheço o seu mérito e não ponho em causa a sua boa-fé, embora me pareça que, como a generalidade dos jornalistas, quando escreve sobre matérias doutrinais, sobretudo em questões éticas, as suas análises pecam por alguma superficialidade, se não mesmo por uma certa subserviência aos cânones do politicamente correcto.
Não é caso único pois, no editorial do Público de 25-2-2019, Ana Sá Lopes dissertou sobre o inexistente “dogma da castidade obrigatória”, confundindo castidade – a que todos os cristãos, casados e solteiros, estão obrigados – com celibato, que na Igreja católica, ao contrário do que diz, é opcional, embora necessário para a ordenação presbiteral, mas não diaconal, e para a vida religiosa. Também ignora a distinção entre dogmas, que versam sobre matérias de fé; e mandamentos e outras normas disciplinares, que incidem sobre questões morais. Se os jornalistas se abstêm – e bem! – de opinar sobre matérias científicas – não consta que tenham, até à data, questionado nenhuma fórmula química – porque o não fazem em relação às questões teológicas, em que a sua competência não é maior?!
É curioso notar que, os mesmos que estão sempre a invocar a laicidade do regime e a separação entre a Igreja e o Estado, são também os que mais gostam de dar palpites sobre o que a Igreja deve, ou não, fazer. A imprensa, mesmo não sendo um poder democrático, deveria respeitar esse princípio constitucional, do mesmo modo como a Igreja não se imiscui em questões internas da comunicação social, dos partidos políticos ou do Estado.
Chama a atenção o tom paternalista da crónica de João Miguel Tavares: “Há uma coisa que a Igreja portuguesa tem de perceber, e que eu tenho muitas dúvidas de que já tenha percebido”. A Igreja portuguesa conta, na actualidade, com quatro cardeais, perto de cinquenta bispos, alguns milhares de padres, centenas de religiosos, milhões de leigos, entre os quais não faltam professores catedráticos, escritores, cientistas, filósofos, juízes, advogados, etc. Contudo, João Miguel Tavares acha que “há uma coisa que a Igreja portuguesa tem de perceber” e que é ele que a deve explicar. Está tão convencido da sua superioridade que, mais adiante, volta a dizer que “é importante explicar a padres e bispos” o que só ele sabe e pode, por isso, ensinar. Note-se que esta sua visão da Igreja, que identifica com “padres e bispos”, não só é clerical como anacrónica: pelos vistos, João Miguel Tavares ainda não percebeu o Concílio Vaticano II, que proclamou a igual dignidade de todos os fiéis.
Num gesto de grande generosidade, João Miguel Tavares deu um ‘suficiente menos’ às declarações do porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, o Padre Manuel Barbosa. Suficiente, porque “se esforçou por usar as palavras correctas”; mas menos, porque “a sua resposta não repousou ninguém”.
João Miguel Tavares centra a sua magistral lição no que supõe ser uma “questão óbvia”, que formula em jeito de interrogação: “quem atribui à Igreja o direito de ser ela a avaliar primeiro a ‘credibilidade e o fundamento’ nas queixas de abusos sexuais, em vez de esse papel caber, como manda a lei, às autoridades civis? Desde quando devem os tribunais eclesiásticos confundir-se com tribunais criminais, para que só sejam comunicados à polícia aqueles casos em que as instituições da Igreja, do alto da sua sabedoria, considerem credíveis e fundamentados?”.
É verdade que o abuso de menores é um crime público e, portanto, da competência exclusiva do Estado português, a quem cabe a investigação criminal, a instrução judicial e a aplicação da pena que corresponda. Aliás, a Igreja não tem meios que lhe permitam realizar uma investigação judicial, nem tem cárceres onde se possam cumprir penas privativas da liberdade, desde que o Santo Ofício os deixou de ter.
Que estes crimes sejam da competência das autoridades judiciais civis, como é óbvio, não quer dizer que a Igreja, antes de denunciar uma situação que possa tipificar um crime dessa natureza, não deva proceder a um prévio inquérito sobre a situação. Por exemplo, se um adulto, num centro paroquial ou colégio católico, abraça efusivamente uma criança, essa atitude pode ser suspeita, mas só se não se tratar do pai, ou de outro familiar próximo. Se um sujeito assiste a uma festa religiosa, ou a uma competição desportiva infantil, e fotografa todos os participantes, o seu comportamento pode ser um abuso. Mas, se for um fotógrafo contratado pelos pais, não faria sentido a denúncia.
Aliás, não é só a Igreja que deve proceder a uma primeira apreciação, mas qualquer entidade em que possam ocorrer abusos de menores. Como é sabido, a grande maioria destes crimes ocorre no seio das famílias, ou em instituições académicas e desportivas: o número de professores pedófilos, nos Estados Unidos da América, é cem vezes superior ao dos padres condenados por este crime. Claro que estes resultados não devem dar azo a um clima de suspeição em relação às famílias, nem contra os professores e treinadores desportivos. Muito menos deve servir para minimizar a especial responsabilidade e, por isso, a acrescida culpa dos clérigos e religiosos que incorreram neste tipo de crimes. Em todos os casos, sem excepção, é necessária a denúncia às autoridades policiais e judiciais pelos responsáveis por quaisquer entidades frequentadas por menores, sejam eclesiais, académicas ou desportivas.
João Miguel Tavares acusa a Igreja de ter a “ideia de que existe um Estado espiritual a viver dentro de um Estado legal, mas que lá no fundo, no fundo, é moralmente superior por serem mais meritórios os seus fins”. Também afirma, categoricamente, que essa peregrina ideia da Igreja lusitana “é uma das piores manifestações daquilo que o Papa Francisco chamou ‘clericalismo’”.
Felizmente, a realidade é muito diferente. A Igreja católica portuguesa nunca pensou, nem desejou, substituir o Estado nas suas competências policiais e criminais, até porque, como já se disse, não tem os meios necessários para a averiguação de factos desta natureza, nem para a instrução dos correspondentes processos, nem para a aplicação das penas correspondentes. Graças a Deus, não há, nem nunca haverá, a não ser que se proponha a restauração da Inquisição, nenhuma polícia judiciária eclesial, nem nenhum presídio católico.
Quer isto dizer, então, que a Igreja se deve abster de apreciar estes casos? De modo nenhum. Contudo, o seu conhecimento não incide sobre a matéria criminal, que é da exclusiva competência dos órgãos jurisdicionais do Estado, mas sobre os efeitos eclesiais de uma tal condenação. Ou seja, se um sacerdote for declarado culpado, em tribunal, por um delito de abuso de menores, essa decisão deve ter efeitos no âmbito eclesial: em princípio, implicará a suspensão das suas actividades ministeriais, se não mesmo a destituição da sua condição eclesial, como aconteceu recentemente ao ex-cardeal McCarrick.
Também neste seu modo de proceder, não há nenhuma prepotência da Igreja portuguesa, nem a arrogância moral que João Miguel Tavares tão levianamente lhe atribui. Na realidade a Igreja católica faz o que também fazem, ou deviam fazer, todas as outras instituições portuguesas e internacionais.
Se um deputado de um partido político é acusado de burla, ou de homicídio, é evidente que a instrução do respectivo processo não corresponde ao parlamento, nem aos órgãos jurisdicionais do seu partido, mas ao Estado português, na medida em que se trata de crimes punidos pela lei e ninguém – seja deputado, juiz, padre, banqueiro ou ex-primeiro-ministro – está acima da lei num Estado de Direito como é, ou devia ser, Portugal.
Mas, que o crime seja punível pelo Estado, não quer dizer que não procedam outras consequências, nomeadamente de carácter profissional. É razoável que um jurista, se culpado de crimes de burla, seja proibido, pela sua ordem, de exercer advocacia. A Igreja também entende que um seu ministro, que tenha sido condenado por crimes de abuso de menores, não pode exercer o ministério para que foi ordenado e, por isso, procede à suspensão dessas suas funções ou, até, à demissão da sua condição sacerdotal. É isto clericalismo?! Pelo contrário! Clericalismo seria que, por ser padre ou bispo, não sofresse as consequências decorrentes dos seus actos criminosos.
Mais uma vez, João Miguel Tavares falha a pontaria quando, em jeito de conclusão, remata a sua crónica com uma sentença moralista: “Já vai sendo hora de a Igreja deixar de colocar o seu desejo de poder à frente do seu sentido de missão, e parar de confundir constantemente crime com pecado”. Não só a Igreja nunca confundiu o crime, que é da alçada exclusiva dos tribunais do Estado, com o pecado, que só pode ser validamente absolvido em sede sacramental, como o seu suposto “desejo de poder” mais não é do que a realidade de um serviço que, contínua e abnegadamente, suprindo muitas vezes as deficiências da acção social do Estado, presta aos milhares de anónimos beneficiários da sua caridade.