O problema não é a queda de um governo. Isso pode acontecer por múltiplas razões válidas. O grande problema é o efeito terrível desta crise inesperada e inédita na imagem externa do país. É assim no incrementar da perceção de corrupção, de hostilidade ao capital estrangeiro, de opacidade e morosidade da justiça, da instabilidade política. Tudo isto são fatores muito desincentivadores do grande investimento estrangeiro de que precisamos. Ninguém de boa fé pode negar tensões e desconfianças sem precedentes entre os diferentes poderes do Estado. É também notória uma crescente polarização política e partidária muito centrada em casos e casinhos, portanto distraída das verdadeiras prioridades do desenvolvimento do país. Pior, enfrentamos esta crise num momento de crise e rutura da ordem internacional, de multiplicação de conflitos violentos, de transformação radical da economia, da energia, da tecnologia que representam enormes desafios para Portugal.

Crise na separação de poderes e populismo justicialista

Uma crise como esta até pode ser inevitável. Negar a sua existência é que seria um disparate. Sim, a separação não pode significar imunidade ou impunidade seja do governo, do parlamento ou da justiça. Mas o que sucedeu não é certamente algo normal e corriqueiro. Uma das coisas que a chefia legal do Ministério Público, e não o seu porta-voz oficioso, deviam esclarecer cabalmente é porquê agora? A investigação, as escutas aparentemente duram há anos, o que tornou tão urgente estas diligências agora? Não acontece todos os dias tornar-se inevitável a demissão do chefe de governo, neste caso António Costa, por um vago comunicado do serviço de imprensa da Procuradoria Geral da República. Isto dando eu de barato que a crise também resulta da recusa ou incapacidade de Costa renovar o pessoal político à sua volta. Muito poderia ser diferente se o líder do PS tivesse ouvido, não a oposição ou a imprensa, mas os apelos nesse sentido do presidente do próprio partido, Carlos César.

Também me preocupa que um antigo líder da oposição, Rui Rio, veja a sua casa revistada pelas mais vagas suspeitas. E que casos que destruíram carreiras políticas, como os de Miguel Macedo ou Azeredo Lopes, tenham dado em nada. Para mim, como um verdadeiro liberal, são sinais preocupantes de que alguns – sublinho, alguns – magistrados parecem conviver bem com a prática de fugas máximas e esclarecimentos mínimos, de prender primeiro e investigar depois, da máxima suspeição de todos os políticos. Isto só pode dar maus resultados para a democracia, para a justiça e para o país.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Claro que a corrupção é um crime grave. É inaceitável que um chefe de gabinete, braço direito e alter ego do Primeiro Ministro, tenha dezenas de milhares de euros não declarados e escondidos no seu gabinete de trabalho. Preocupa-me, no entanto, o crescimento de um populismo justicialista que denuncia qualquer crítica ou questionamento à atuação de algum magistrado do Ministério Público como uma prova de cumplicidade com o alegado crime. Eu critiquei, no passado recente, as delirantes acusações de terrorismo em Alcochete e no caso de um alegado massacre planeado para uma Faculdade. Caíram depois, mostrando que há, claro, magistrados com bom senso e sentido de justiça. Mas espero que isso deixe claro que apontar erros, questionar disparates da justiça num determinado momento não torna de mim um defensor do crime, seja da violência no desporto, ou dos massacres na universidade onde trabalho. Preocupa-me, sim, preservar a essência do Estado de Direito e de uma democracia liberal, em que não pode valer tudo, mesmo no combate aos mais graves dos crimes.

Na verdade, este populismo justicialista só vai beneficiar os extremos, os mais hostis ao regime democrático. Arrisca-se a tornar o país ingovernável e economicamente inviável, alimentando vícios e abusos de poder do sistema judicial, sem aumentar a eficácia no combate ao crime, como se tem visto em alguns casos em que uma populista montanha judicial inicial acabou a parir um rato de poucas ou nenhumas condenações. Também não aceito, na mesma linha de rigor e bom senso, que se acuse genericamente, e menos ainda sem provas sólidas, o conjunto da magistratura de conspirar contra um governo. O que todo este clima torna evidente, mais uma vez, é que estamos a viver uma crise de regime. Convém que todos – a começar pelos principais responsáveis dos três poderes do Estado – tenham a noção plena da gravidade da situação e se comportem em conformidade. Mas então e os avós sapateiros?

Os avós sapateiros

Este não é um pretexto para falar do Pedro Nuno Santos ou para deixar de falar da crise em curso. É mesmo um pretexto para falar do meu avô sapateiro. Ser sapateiro era uma ocupação frequente numa época em que a produção industrial de calçado não estava generalizada. Ela não significava necessariamente ser pobre, sobretudo numa cidade ou vila. Muitas vezes equivalia a ser próspero proprietário de uma loja com, literalmente, muito cabedal. E para mim é claro que ser pequeno ou médio empresário, criador de riqueza e emprego, honesto pagador de impostos, não deve acarretar desonra própria ou familiar, bem pelo contrário.

O meu avô Manuel, pai do meu pai, era realmente sapateiro, mas numa pequena aldeia. Não era suficientemente remunerador, como fica claro por também ser lavrador, trabalhar numa fábrica e até pescar no rio vizinho. Lá por casa abundava a comida, mas não dinheiro. Ou seja, o multitasking não é uma invenção recente. O que meu avô não fazia muito era dormir. O que talvez ajude a explicar que tenha sido mortalmente atropelado ao sair de uma fazenda de madrugada, era o meu pai ainda muito jovem. Por isso, nunca conheci o meu avô sapateiro e tenho pena. Entre as poucas histórias que sei dele está a sua vã tentativa de votar nas eleições presidenciais de 1958. Insistiu com o presidente da mesa de voto que até poderia votar no almirante (Américo Tomás) mas também queria ter a opção de votar no papel do general (Humberto Delgado), que lhe era negado. Nessa época não havia um boletim eleitoral único, nem qualquer controlo independente das eleições. O que havia muito era tráfico de influências desenfreado e impune. O Arquivo Salazar, que conheço bem, documenta isso a cada passo – até para contínuo no tribunal mais recôndito havia cunhas ao Presidente do Conselho, embora este último só se interessasse pelo poder e não fosse pessoalmente corrupto. O regime atual, vigente desde 1976, tem os seus problemas a corrigir. Mas convém recordar que nunca vivemos tão prósperos e tão livres na nossa história.

E depois?

Podemos regular o lobby e aumentar mecanismos preventivos da corrupção, inclusive reduzindo o peso da burocracia, seja com um simplex industrial ou outra melhor alternativa. O que não podemos é, por exemplo, deixar de tirar o máximo partido da oportunidade histórica de termos as maiores reservas de lítio da Europa. A mineração exige sempre um grande investimento com um retorno a prazo. É uma atividade necessariamente muito regulada. Tudo isto significa que não é viável, em qualquer país do Mundo, sem uma forte negociação com o Estado. Isso deve ser feito de forma escrutinável e garantindo o máximo de retorno para todos, e não apenas para alguns. Dito isto parece claro que Portugal, país fortemente endividado, dificilmente explorará as maiores reservas de lítio da Europa sem forte investimento estrangeiro. Mais ainda se quisermos fazer mineração ambientalmente sustentável, logo mais cara. Ou se quisermos, como deveríamos, processar e transformar o lítio aqui, para garantir que aqui fica o máximo de valor. Temos uma janela de oportunidade de alguns anos para nos afirmarmos nesse mercado, ou dificilmente outros deixarão de ocupar esse espaço, com algum risco, mas potencialmente muito lucro.

A importância do lítio ou da transição energética e tecnológica não podem, claro, desculpar ou levar a ignorar-se a corrupção ou o tráfico de influências. Mas a importância do combate à corrupção também não pode anular a importância de avançar nestes campos vitais para nos afirmarmos na economia global do século XXI. O PSD, como principal alternativa histórica ao PS, devia deixar isto bem claro, seria um importante sinal para o exterior. Para ganhar eleições seria importante, talvez, deixar-se de vez de guerras internas.

E Pedro Nuno Santos? Ele não é só neto de sapateiro. Também é um político talentoso. Se não o fosse, não seria elogiado por comentadores tão distintos e diferentes como Daniel Oliveira e Marques Mendes. A história do avô sapateiro, com a qual simpatizo, mostra que percebeu que deve distanciar-se da imagem do PS como um partido dominado pelas elites lisboetas. Também parece ter percebido que o país e o PS não são historicamente de grandes extremismos. Ou isso, ou José Luís Carneiro – segundo uma sondagem recente visto pelos portugueses como o melhor ministro deste governo – já teve o condão de levar Pedro Nuno Santos, que aparece na maioria da opinião publicada como o inevitável novo líder dos socialistas, a assumir uma postura mais centrista. Veremos se dura. O bom senso parece ser uma qualidade cada vez mais rara, e não só na política.