O caso da “ação terrorista” contra a equipa do Sporting em Alcochete já nos devia ter alertado para o problema de um pseudo-terrorismo à portuguesa. Mas o ataque, segundo os meios de comunicação, aparentemente planeado por um estudante perturbado para causar um morticínio em massa na Faculdade de Ciências de Lisboa veio chamar a atenção para a urgente necessidade de lidar com este problema e o resolver, a bem da credibilidade das nossas instituições. A credibilidade das instituições é, historicamente, convém recordar, um alvo tradicional dos terroristas. Convém não fazermos o trabalho por eles.

Qual é, então, o problema de denominar esta ação criminosa planeada para a Faculdade de Ciências de Lisboa como “atentado” ou “ação terrorista”? É o de que não se vê razão para essa qualificação, pelo menos, repito, com base no que tem sido noticiado nos meios de comunicação social. Não há razão para o fazer se tivermos em conta uma qualquer definição de terrorismo que faça sentido, que seja conforme com o uso corrente deste termo a nível internacional ou europeu, e que preserve aquilo que o terrorismo tem de específico. É verdade que há variantes na definição de terrorismo – ao nível académico ou a nível legal – mas todas as que são credíveis e fazem sentido procuram delimitar com rigor o que tem de específico este fenómeno.

A linha central do conceito de terrorismo assenta sempre no recurso planeado e premeditado a meios violentos, com vista a causar a máxima perturbação e impacto público, supostamente justificado pelo serviço a uma causa maior, uma fé política ou religiosa. Dizem-me que a lei portuguesa passou a permitir – embora, certamente, não obrigue – esta interpretação abusiva, e que até o faria em nome da transposição de uma diretiva europeia. Porém, aquilo que verificamos por toda a Europa ou nos EUA quando se deteta um ato de violência deste tipo é que, para se saber se deve ou não ser qualificado rigorosamente como terrorismo tem de se perceber, precisamente, se há ou não uma intencionalidade e filiação credíveis a uma causa ou ideologia, ou se, pelo contrário, se tratou de um ato individual, criminoso, claro, mas com alvos escolhidos em função de alguma queixa ou perturbação pessoal. Isso ficou claro, por exemplo, nesta reportagem da BBC sobre uma série de ataques, todos eles violentos e alarmantes, na Alemanha, uns considerados terrorismo, outros incertos, e outros não. Essa avaliação até pode mudar, mas não os critérios que a determinam.

Felizmente, Portugal tem pouca experiência recente de organizações e de ataques terroristas, depois da eficaz ação policial contra as FP-25. Agora parece querer encontrar-se uma solução espúria para o “problema”, que passa por uma definição jurídica de tal forma ampla do crime de terrorismo que permite uma utilização abusiva do conceito, a ponto de este perder qualquer sentido. A incrível qualificação como terrorismo do caso de Alcochete foi um primeiro exemplo disso, mas podia ser a exceção. Agora, temo que se torne a regra. Espero que a minha impressão não se confirme. Até porque, provavelmente, ajuda-se assim, de caminho, a causar o alarme social que parece ser a principal justificação para o uso do termo.

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O planeamento de um morticínio em massa não é, em suma, automaticamente um ataque terrorista, mesmo que cause, naturalmente, rejeição e medo. Há algo mais aterrorizante do que um assassino em série? No entanto, estes não são classificados como terroristas. Os próprios ataques terríveis a várias escolas nos EUA (que, aparentemente, este jovem terá investigado de uma forma que o terá denunciado) não são classificados como atentados terroristas pelos juristas ou pelos especialistas norte-americanos ou internacionais.

Qual é, então, o problema? O que interessa não é evitar ataques violentas, seja lá com que designação? Como dizia Carl von Clausewitz, para se vencer é fundamental perceber objetivamente o tipo de combate em que se está. Sem conhecer rigorosamente uma ameaça não é possível vencê-la. Cria-se ainda um problema sério de reporte internacional aos nossos parceiros, se reportarmos como ações terroristas ações que claramente não o são, criando uma confusão que afetará a nossa credibilidade. Se me dizem que o objetivo desta definição ampla é “facilitar” o combate à criminalidade, não parece que isso seja aceitável. A lei não deve prestar-se a facilitismos, pois vivemos num Estado de Direito. Espero que se altere a lei e/ou a sua aplicação para evitar estes episódios. No caso deste jovem a avaliação preliminar feita aqui até pode mudar, repito, se as informações disponíveis vierem a revelar uma filiação real e credível a um grupo terrorista. No caso do “terrorismo de Alcochete”, o dislate e a inadequação do conceito na lei e da sua aplicação a esse caso concreto é evidente.

Resolver este problema conceptual permitiria focarmo-nos em problemas reais para lhe dar soluções reais. Por exemplo, reforçar os meios de apoio à saúde mental, nomeadamente no ensino superior. Ou, criar a possibilidade de vigilância ativa e preventiva de comunicações e acesso a sites suspeitos pelas polícias, com o fim de prevenir este tipo de ações, quer no caso de eventuais ataques terroristas, quer no planeamento de morticínios em massa, como parece ser aqui o caso. Será preciso fazê-lo, claro, com as devidas cautelas e escrutínio, mas é manifestamente irresponsável que Portugal seja das poucas se não a única democracia europeia em que isso não é possível. Até porque no mundo atual não há espaço vazios. Felizmente para nós, mas tristemente para a nossa credibilidade externa, o resultado deste vazio foi o de ter sido graças à vigilância do FBI que o risco desta ação violenta foi inicialmente detetado (o que não significa que desvalorize o trabalho policial posterior). Aqueles que nas nossas instituições se dedicam de forma séria e dedicada ao combate ao terrorismo – em relação ao qual não podemos ser complacentes – ou a outras formas de criminalidade violenta merecem melhor do que manter-se este tipo de confusão.