Há um ano confrontava-se o país com aquilo que ficou conhecido como “a crise (das urgências do SNS) dos feriados de junho”.

Após muitas tentativas de se minorar ou mesmo esconder o problema, de o circunscrever ao período dos feriados e somente à região de Lisboa, com o passar das semanas todos os portugueses conseguiram ver que, afinal, o problema era generalizado. E grave. Tão grave que, na sequência de (mais) uma morte, a Ministra da Saúde demite-se no final de agosto.

Hoje, passados muitos meses sobre essa demissão e quase um ano sobre a nomeação de um novo Ministro da Saúde, que assistimos?

Ao mesmo… com novas caras. Mantém-se a mesma crise nas urgências. Nos feriados, fins-de-semana e dias úteis.

Com a agravante de que há cada vez menos médicos no SNS, cada vez mais utentes sem médico de família (e, portanto, a verem-se obrigados a recorrer aos serviços de urgência ou, em alternativa desumana, a esperarem desde madrugada em longas filas para tentarem obter o acesso- um direito constitucionalmente conferido – a um eventual atendimento no centro de saúde).

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Disto são exemplos a recente (e inesperável) crise no serviço de urgência de obstetrícia/bloco de partos do maior hospital do País: não consegue ter uma equipa de médicos que cumpra os números mínimos de segurança recomendados pela Ordem dos Médicos e está, desde o início de julho, a transferir (pela primeira vez na história do SNS, excluindo-se situações de catástrofe ou calamidade!) doentes para os hospitais privados. Repare-se que isto já é defendido pela “direita” (a clássica, como o CDS, que o defende há vários anos; a recém-nascida e de direita meramente em termos de liberalismo económico, como a IL; e, até recentemente, pela sempre indecisa entre esquerda e direita, como o PSD). Mas algo que estava previsto acontecer em agosto, por altura do início de obras no bloco de partos, começou já, não por ideologia, mas por falta absoluta de médicos. E, note-se,: os médicos são os mesmos! Deixaram foi, por razões que só a eles dirá respeito, de estarem disponíveis para realizar mais do que 150 horas extraordinárias por ano…limite que já tinham atingido em junho! Portanto, continuamos a ter um SNS frágil e dependente da mera boa-vontade dos médicos em realizarem horas extraordinárias, privando-se do tempo de descanso, com todos os riscos que daí poderão decorrer (para o profissional e para o utente). Assim que essa disponibilidade termina ou se reduz, o SNS “quebra”. Em simultâneo, as negociações com os sindicatos dos médicos (e outros profissionais de saúde) arrastam-se indolentemente, como se tudo estivesse perfeito…

(Sobre a questão das horas extraordinárias é curioso que seja legalmente obrigatório um período de descanso após uma noite de trabalho, mas não haja nenhuma obrigatoriedade de tempo de descanso proporcional ao número de horas extraordinárias realizadas, no número de dias de férias anuais).

Numa outra situação, também já no início de julho, um doente morreu à porta (fechada) da urgência do Hospital de Serpa. E aguardou, alegadamente, no chão, cerca de uma hora, para ter assistência médica…algo que era expectável que tivesse podido aceder no serviço de urgência. O Ministério da Saúde terá, em vigor, um contrato para que esta urgência esteja aberta 24 horas por dia, todos os dias. Mas não está…e não é de agora… Quem é responsável por garantir que o contrato (em vigor) está a ser cumprido? Quem é, no fundo, responsável, por este infeliz desfecho? Provavelmente o solteiro do costume…

A solução até agora apresentada pela Direção Executiva do SNS (para além dos encerramentos dos serviços de urgência realizados de forma rotativa, em rodopio, baralhando utentes e profissionais do sistema) foi o “empoderamento” da central telefónica SNS 24 como “porteiro” do sistema, num projeto piloto iniciado na Póvoa de Varzim. Os resultados do primeiro mês deste projeto, recentemente divulgados mostraram o seguinte:

Aumentou (contrariamente ao pretendido) a ida de doentes ao Serviço de Urgência (SU) face ao ano anterior; 50% dos doentes que encaminhou para o SU foram classificados lá como verdes e azuis (os tais que se queria evitar que fossem aos SU!); A redução da percentagem de verdes e azuis atendidos no SU foi apenas de 39 para 34%; E (talvez mais importante!), de todos os verdes e azuis atendidos no SU, apenas 19% teriam condições para serem reencaminhados para outro local que não o SU (as tais “falsas urgências” que afinal, só podem ser atendidas nas urgências); Mesmo destes, apenas 2-3 por dia aceitam sê-lo!

Portanto, um fiasco. Basicamente, porque parte de premissas erradas:

Triar como azul ou verde no SU não significa que o utente não tenha razões para lá estar ou que tenha condições para ser tratado noutro lado. Significa apenas que pode esperar no SU mais que os outros para ser atendido!; Não se muda a cultura de um povo por decreto! Essa está enraizada e intimamente ligada a perceções, como a segurança e a qualidade; Os sistemas de triagem telefónicos irão sempre “pecar por excesso”. É a sua função!

Em conclusão, mudaram-se os rostos dos Ministros, mas os problemas que levaram à demissão de um mantém-se durante a governação do outro…É, pois, aparentemente indiferente “executar” o SNS desde um edifício central em Lisboa, com ladrilhos pretos e brancos, ou de um “barraco” pré-fabricado no Porto.