Já se produziram litros de páginas sobre o livro e a estreia do filme veio naturalmente multiplicar as reflexões e a polémica. É estranho, na minha opinião, que um assunto tão banal e há tantos séculos narrado, ficcionado, fantasiado, reprimido, execrado, estimulado, e outros particípios passados mais ou menos alternativos, seja motivo de tanta atenção. Porque será?

A pergunta permite todas as respostas. Porque é um tema muitas vezes tabu, sob pressão de religiões que vêem no prazer terreno uma ameaça à fruição eterna; porque, como defendeu a “nossa” Lucy Pepper” neste jornal, a pornografia é um terreno eminentemente masculino a que as mulheres estarão tentadas a aceder por curiosidade ou gosto, logo se verá; porque sendo a fronteira entre o sexo e o amor ténue e difícil de discernir, narrativas desde tipo as confundem e associam, com a sobrecarga de emoções – e a emoção – que daí decorre.

É isso: sexo e amor. Em matéria de relações físicas acredito que seres humanos adultos e consentintes podem fazer com os seus corpos o que quiserem, quando e como quiserem, desde que com isso não violem direitos de terceiros. Mas há uma obrigação que nos vincula a todos, social, de cultura e tradição, que é no fundo ética (não confundir com moral), uma espécie de guia para o nosso comportamento na sociedade que integramos. Ele determina a forma de agir nesse contexto, com responsabilidade acrescida na educação de jovens e crianças, futuros utentes e previsíveis cultores desses valores e dessa ética.

Ponto número um: sexo não é amor. Mais banal não podia ser, eu sei. Mas não é. A língua portuguesa possui uma expressão notável, quase extraordinária, que na sua simplicidade diz tudo: fazer amor. Não é a única, aliás: make love; faire l’amour. Fazer amor não é a mesma coisa que fazer sexo. Mais banal não podia ser, eu sei. Mas é mesmo assim.

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Ponto número dois: o sexo ao serviço do amor – entre duas pessoas que se amam – potencia o amor. Amor sem sexo, muito dependendo da idade e da saúde, é difícil de sustentar. A prazo, o mais puro e nobre amor estiola se entre dois seres sujeitos às normais pulsões sexuais o sexo não acontecer ou não passar de mera repetição (quase) assexuada de gestos e comportamentos habituais. Sexo sem sensualidade, afinal. Repito-me, correndo acrescidamente o risco de chocar algumas almas mais puritanas: dois seres que se amam podem fazer o sexo que quiserem , como quiserem, não apenas genital, e ninguém tem nada a ver com isso. O risco, caso não se entenda a importância da imaginação e da capacidade de mudar, é a instalação da rotina, interruptor dos mecanismos do cérebro que alimentam o eros, comandante dos mecanismos da emoção e da excitação. O risco é a morte a prazo do sexo na relação –  temível inimigo do amor (da fidelidade, do respeito, da admiração).

Ponto número três: o sexo é importantíssimo, mesmo sem amor. Já Freud salientou a prevalência de problemas sexuais na génese e etiologia das neuroses, tendo aliás (em 1905, há mais de cem anos), identificado questões hoje corriqueiras como a pulsão e a frustração sexual, a passividade e a actividade, o papel relativo de homens e mulheres na relação. É pois natural o sexo independentemente de amor que o sirva e, uma vez mais, ninguém tem nada a ver com isso, desde que envolvidos estejam seres inteiramente livres. Não se diga que fazem amor, pois isso é outra coisa, mas não deixa de ser recompensador e belo, como canta Gal Costa “No ápice, Em átimos Que pareceram séculos, Eu me banhei E me lavei Em sexo e luz”.

Ponto número quatro: as sombras de grey, quer o livro quer sobretudo o filme, são de uma insuportável banalidade, um hino à falta de imaginação. O que é em tudo aquilo novo, já para não dizer excitante? Sado-masoquismo, encenação  mágico-libidinosa, algemas (imagino sempre que essas pessoas não importarão de ser presas), um softporno deslavado e insonso, sexo para quem não gosta de sexo – desculpem, desculpem, mas saiu-me.

Há algum tempo livros foram escritos, filmes produzidos, bem mais interessantes e desafiantes na perspectiva que supostamente justifica a excitação e frenesim destas novas sombras: recordo por exemplo Henry Miller, pai espiritual de Jack Kerouac, Charles Bukowski e outros, cuja frase icónica era “todos dizem que o sexo é obsceno, mas a única verdadeira obscenidade é a guerra”; ou “O Último Tango em Paris, “La grande bouffe”, filmes realmente vitais, muito mais perto da vida do que alguma vez estará Grey envolta nas suas sombras leitosas.

À força de tudo ser revelado e tudo vermos, a imaginação faz-se-nos preguiçosa e deixa de estar ao serviço dos nossos sentidos. Somos ávidos de sensações, sempre à espera de ser surpreendidos; nada nos interpela. Autómatos de um novo Mundo onde tudo parece velho e paradoxalmente se refaz em novas e luzidias vestes, tecidas por poderosas máquinas publicitárias, repetindo-se até à exaustão da náusea – avoluma-se-nos um sentimento de pessimismo, de desconcerto por uma existência mais ou menos falha de sentida, deriva niilista por Sartre proclamada no seu livro de estreia com o mesmo nome (“Náusea”).

Ponto quinto e último: regresso ao amor, a verdadeira e mais pura das forças, a que poderíamos aplicar o aforismo de Santo Agostinho a propósito do Tempo: sei exactamente o que é, salvo quando me pedem para o definir (adaptação minha). Um amor com sexo partilhado e livre é luz e é vida. É bom. Não precisa de algemas para nada, mas se quiserem usá-las pois usem-nas e não prestem contas a ninguém. Amor é partilha. Fruição de um no outro. Por alguma razão 90% de todas as músicas (ou 95 ou 71%, tanto faz) jamais escritas são sobre ele. Amor é erigir um mundo secreto só nosso de dois, onde ninguém mais entra, uma construção permanente de um presente já futuro, e de sexo sem tabus. Ou não, se for essa a vontade de ambos, mútua e verdadeiramente assumida.

Amar é ter vontade de ser o outro em si, é fazer-nos nós nele, espiritual e fisicamente. Não deve haver sombras no amor, muito menos as provocadas por tabus. Mas sobretudo não podem ser sombras como as de Grey, pífia imitação de sexo, a resgatar o amor ou, sequer, o prazer provocado pelo sexo livre e bom, verdadeiro, feito de sedução e imaginação.

Tornar a experiência de Grey um marco ou um farol, dar-lhe importância, fará de nós como que a mosca esmagada por Roquentin em “La Nausée” de Sarte, a argumentar que assim a libertava do peso da existência, um favor que lhe fazia. Mais non!

 

PROFESSOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA