A Dinamarca reviu a medida de proteção internacional a mais de 1250 refugiados sírios a viver no seu território, uma vez que considera que Damasco e os seus bairros circundantes são zonas seguras e, portanto, estas pessoas podem regressar ao seu país de origem.

Acontece que esta decisão da Dinamarca colide contra todos os relatórios internacionais, nomeadamente, das Nações Unidas, que considera Damasco uma zona em conflito e incapaz de oferecer as necessárias condições de segurança aos seus cidadãos, de acordo com padrões internacionais.

Esta decisão dinamarquesa não é única e é reveladora de uma tendência no que respeita ao cumprimento do Direito de Proteção Internacional. Suécia, Alemanha e Reino Unido já demonstraram posições semelhantes ou que de certa forma inverteram os princípios decorrentes da necessária e exigida proteção internacional de refugiados.

O pós-Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), em 1948, e as várias Convenções das Nações Unidas que se lhe seguiram (entre outras, a Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto de Refugiado, em 1951, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 1979, ou a Convenção para a Proibição da Tortura, em 1984) mudou, radicalmente, a vertente ética nas relações internacionais.

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No cenário internacional, os Estados passaram a usar um código de ética baseado no respeito pela dignidade humana e não apenas nos “valores típicos dos Estados, como a soberania ou o respeito pela integridade territorial e pelas fronteiras”.

Neste sentido, a proteção dada aos direitos humanos e à dignidade humana passaram a ser um dos princípios fundamentais em que se baseiam as relações internacionais e o Direito Internacional. E, por outro lado, passaram a estar associadas às noções de “paz e desenvolvimento”.

É assim que, com especial preocupação, assistimos ao que aconteceu na Dinamarca e a contaminação que estes acontecimentos geram em outros países europeus, em especial e para já, na Suécia, Alemanha e Reino Unido.

A Dinamarca reviu a atribuição da medida de proteção dada a mais de 1250 refugiados sírios originários da zona de Damasco e dos seus subúrbios, uma vez que passou a considerar estas zonas seguras e, como tal, não se justifica a aplicação de medidas de proteção internacional ao abrigo da Convenção de Genebra, devendo os mesmos regressar a casa. Mesmo e apesar das Nações Unidas referirem que a Síria é um país destruído por 10 anos de guerra, onde se assiste à prática frequente de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, onde as condições de vida são terríveis e insustentáveis e as violações dos direitos humanos são uma constante. E não há, para já, sinais por parte do governo sírio que estes atos tendem a diminuir.

A 400 refugiados sírios, incluindo crianças, foi-lhes solicitado que abandonassem a Dinamarca de forma voluntária e, caso assim não o façam, serão enviados para Centros de Detenção – centros esses, considerados “inaceitáveis para qualquer pessoa” pelo Comité Europeu de Prevenção contra a Tortura.

Esta medida do governo dinamarquês afeta essencialmente mulheres e crianças, uma vez que considera que o reenvio de homens para Damasco pode levar a que os mesmos sejam recrutados para o serviço militar de forma obrigatória.

Afirmar que Damasco é uma zona segura como forma de cessar a atribuição do estatuto de refugiado e, consequentemente, da necessidade de proteção internacional, é necessário que o refugiado/a se possa fazer valer da proteção dada pelo seu país de origem e, como tal, não corra perigo de vida – causa originária da atribuição do estatuto.

No entanto, a Comissão de Inquérito à Síria das Nações Unidas deixou claro que tal segurança está longe de poder ser uma realidade. Tanto o governo como as restantes partes em conflito não estão dispostas, nem são capazes de responsabilizar os autores dos crimes que ocorrem no seu território, cumprindo assim com as exigências e os padrões internacionais.

Fator determinante para concluir se um Estado está ou não a funcionar devidamente é avaliar a situação dos direitos humanos dos seus cidadãos, nomeadamente a garantia do Direito à Vida, à Segurança, à Liberdade e a Proibição da Tortura. Ora, é a própria Comissão de Inquérito à Síria das Nações Unidas que afirma que dezenas de milhares de pessoas na Síria são privadas da sua liberdade, assim como, centenas de homens, mulheres, raparigas e rapazes com menos de 11 anos de idade foram alvo de constantes violações e abusos sexuais.

Por outro lado, o Syrian Network for Human Rights refere terem ocorrido mais de 150 casos de prisões e detenções arbitrárias, na sua grande maioria em Damasco e zonas circundantes – a mesma zona territorial que o Estado dinamarquês considera como zona segura para reenvio dos refugiados no seu território.

Há, ainda, relatos de que muitos dos sírios que voltaram ao seu país foram alvo de interrogatórios, detenções e tortura pelo governo sírio.

Vejamos, então, o que nos dizem as orientações internacionais de cessação do regime de proteção internacional e do estatuto de refugiado. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados declara que “alterações às condições de segurança no Estado de Origem que apenas se verifica numa parte do seu território não devem levar à cessação do estatuto de refugiado.” A proteção internacional a um refugiado apenas cessa se a perseguição no seu Estado de origem se verificar sem a pré-condição que este deve apenas regressar a uma parte do território, para que não seja alvo de perseguição e consequente morte. Por fim, todos os passos realizados por um Estado tendo em vista a eliminação de ações persecutórias aos seus cidadãos devem ser consolidadas e, posteriormente, avaliadas no tempo antes de ocorrer a cessação da proteção internacional.

O estatuto de refugiado é objeto de causas de cessação, previstas na Convenção de Genebra Relativa ao Estatuto de Refugiado – esta é baseada no juízo de que a causa que originou a necessidade de proteção internacional já não se verifica ou não se justifica, isto é, que aquela pessoa em concreto já não será e deixou de ser “perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, (…), e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Esta decisão do governo dinamarquês colide, assim, de forma evidente com um princípio essencial da proteção internacional de refugiados – o Princípio do Non-Refoulement, isto é, um refugiado não pode ser enviado para o seu Estado de origem onde ainda corra perigo de vida ou seja alvo de perseguição.

O estabelecimento de uma ordem internacional, no pós II Guerra Mundial, assente no institucionalismo liberal e na Organização das Nações Unidas, teve como propósito a elevação da cooperação económica e social, da promoção dos direitos humanos e a manutenção da paz e da segurança internacionais a um nível mundial. Ou seja, estes valores e desígnios deixam de estar sujeitos ao livre arbítrio dos Estados.

É o reconhecimento da existência de valores, princípios e códigos de conduta que merecem uma tutela superior ao Direito Interno de cada Estado, dada assim pelo ordenamento jurídico internacional.

Se até ao momento, a Dinamarca foi o único país europeu a tomar a decisão de cessar a proteção internacional a refugiados sírios, esta decisão revela uma tendência de muitos outros países europeus face à exigida proteção internacional a sírios. Suécia e Reino Unido chegaram a conclusões semelhantes sobre as condições de segurança na Síria, ou seja, que estas melhoraram substancialmente. E Alemanha tornou-se no primeiro país europeu a terminar, no final do ano passado, a proibição geral de deportação de sírios para o seu país de origem. Para além de passar a permitir a deportação de sírios, a Alemanha suspendeu ainda, por dois anos, os pedidos de reunificação familiar, deixando muitas famílias separadas dos seus mais queridos.

O que todas estas decisões demonstram, é um claro aperto e limitação pelos países europeus aos critérios de atribuição de asilo e da devida proteção internacional de refugiados, prevista e definida pelas convenções que estes mesmos Estados assinaram.

São, assim, os países europeus, os que mais sofreram com a Segunda Guerra Mundial, os que põem em causa os fundamentos da Comunidade Internacional nascida no pós-Segunda Guerra. Uma comunidade internacional, orientada pelos princípios do institucionalismo liberal com instituições internacionais que cooperam com os Estados, assente nos pressupostos da defesa da dignidade humana, nascida com a Carta Universal do Direitos Humanos, no respeito pelos valores democráticos e pela liberdade individual.

Por tudo isto, compete ser a Europa a principal defensora dos princípios pelos quais se obrigou a defender.