Confrontada com um enorme fluxo de refugiados no ano de 2015, a União Europeia procurou resolver o problema negociando com a Turquia uma solução que, aparentemente, resolve os problemas dos europeus, que de facto resolve alguns problemas dos turcos e que deixa os refugiados entre os traficantes e um Estado que só na aparência cuida dos seus direitos fundamentais. Foi há cinco anos e, entretanto, a situação não melhorou.

A Declaração União Europeia–Turquia (março de 2016) é o resultado da aplicação máxima do Princípio da Externalização à chamada crise dos refugiados. Isto é, a Europa estendeu até à Turquia as suas fronteiras, fazendo a gestão deste fluxo migratório fora do seu território (e longe da vista dos seus cidadãos). Em março deste ano, o Conselho Europeu, sob a presidência portuguesa, veio reforçar a cooperação com a Turquia.

A aplicação deste princípio, em específico com a Turquia, acarreta várias consequências, mas deveria assentar em, pelo menos, dois pressupostos ou exigências (uma internacional, outra europeia).

A externalização nas políticas migratórias acarreta a celebração de acordos com países terceiros, isto é, com países para onde se possa reenviar requerentes de asilo e onde estes possam beneficiar dos direitos consagrados na Convenção de Genebra relativa ao Estatuto de Refugiado. Onde, em consequência, não sejam alvo de perseguição, reenvio para o seu país de origem – uma vez que são refugiados e não imigrantes (Princípio da Não Repulsão), ou violação dos seus direitos humanos. Só assim estamos perante o que se designa por País Terceiro Seguro, de acordo com as exigências internacionais.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi isto que a União Europeia fez quando celebrou a Declaração UE–Turquia, a 18 de março de 2016. Encontrou na Turquia o aliado para “reter” no seu território milhares de pessoas que procuram na Europa a segurança necessária para a salvaguarda das suas vidas, assumindo que a Turquia era um País Terceiro Seguro. O que dificilmente se pode dizer que é.

A atribuição do estatuto de País Terceiro Seguro pela União Europeia obriga à sua adequação ao Direito europeu, nomeadamente à Diretiva relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional.

A Diretiva exige o cumprimento de quatro requisitos para a atribuição de País Terceiro Seguro: que a vida e a liberdade de um refugiado não seja ameaçada em função da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a um grupo social ou opinião política; aplicação do Princípio da Não Repulsão; respeito da proibição do afastamento, em violação do direito de não ser objeto de tortura nem de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; e, por fim, a possibilidade de lhe ser atribuído o estatuto de refugiado aos abrigo da Convenção de Genebra.

Tendo em conta estes condicionamentos/exigências legais, será que podemos classificar a Turquia como País Terceiro Seguro para refugiados? Se olharmos para os últimos desenvolvimentos no Estado turco, terá a Europa a garantia que serão salvaguardadas as exigências internacionais e as suas exigências, as europeias?

Em primeiro lugar, é de destacar que a Turquia é o país do mundo que mais refugiados acolhe no seu território. Estima-se que a Turquia tenha 3,6 milhões de refugiados. Este tão elevado número de refugiados exerce, naturalmente, uma pressão enorme sobre os seus já precários sistemas de saúde, educação e assistência social.

A Turquia, apesar de ter ratificado a Convenção de Genebra, é o único país do mundo que mantém a sua aplicação com limitações geográficas. Excluindo da proteção dada pela Convenção todos os países que mais refugiados “produzem” (como a Síria, o Afeganistão e o Iraque). Isto é, excluindo todos aqueles que não sejam cidadãos europeus.

Assim, a Declaração UE–Turquia atribuiu aos refugiados sírios um regime de proteção temporária, o que, formalmente, lhes permitiria ter acesso aos sistemas públicos de saúde, educação e de acesso ao mercado de trabalho na Turquia. No entanto, a situação dos sírios naquele país tem sido, desde o início, bastante vulnerável, tanto na procura de trabalho como na aquisição de habitação, e onde muitos se encontram em situação de extrema pobreza. O acesso ao mercado de trabalho turco é limitado, sujeito a um regime de quotas e só para determinados sectores de atividade. E a UNICEF estima que mais de 400 mil crianças sírias não frequentem o sistema de ensino turco. E apenas estamos a falar de sírios…

Logo uns meses após a assinatura da Declaração UE–Turquia, em novembro, a Human Rights Watch já denunciava claras violações do Direito Internacional em território turco. Não só refugiados sírios eram impedidos de entrar no seu território, como eram devolvidos à Síria, à guerra de que fugiam. Quatro anos depois da assinatura da Declaração e tendo já a UE desembolsado grande parte dos 3 mil milhões de euros para a melhoria das condições de vida de refugiados na Turquia são, novamente, denunciadas várias violações dos seus direitos, em especial a prática de push-backs pela Turquia, ou seja, a devolução de sírios ao seu território.

Acresce que os atentados aos direitos humanos na Turquia não são exclusivamente dirigidos aos refugiados. Na sequência da tentativa de golpe de Estado, em julho de 2016, a Turquia condenou a prisão perpétua 337 militares e civis e deu espaço para que o governo turco adotasse medidas mais restritivas, colocando em causa os princípios da liberdade de expressão, liberdade de imprensa e de independência do poder judicial.

No final deste mês de março, fomos confrontados com duas notícias de natureza oposta. Do lado turco, a notícia que o governo se prepara para adotar diversas medidas que colocam em causa o sistema democrático e a proteção dos direitos humanos, em especial a sua retirada da Convenção Europeia de Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Do lado europeu, a notícia dada pelo Conselho Europeu da semana passada em que a UE está disposta a colaborar com a Turquia de forma gradual, proporcionada e reversível para fortalecer a cooperação numa série de domínios de interesse comum, onde se incluem as questões migratórias.

Ora, como podemos fortalecer a cooperação com a Turquia quando, de um lado, assistimos a uma degradação do seu sistema democrático e de salvaguarda dos direitos humanos (o último relatório da Freedom House coloca a Turquia em segundo lugar na lista de países onde se registou a maior quebra nas liberdades dos seus cidadãos, estando classificada como “país não livre”). E, do outro lado, estará uma UE que se funda “nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. (…) numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”- artigo 2º do Tratado de Lisboa.

Negociar com uma Turquia, cada vez mais iliberal, é um desafio enorme, obrigando a UE a uma vigilância apertada às violações dos pressupostos deste acordo. Uma vigilância nunca poderá ser substituída pelo mero envio de ajuda financeira, mas que tem de exigir ações e medidas concretas na salvaguarda dos direitos humanos de todos, sejam ou não refugiados.