Os acontecimentos das últimas semanas no Afeganistão, com a tomado de poder pelos talibãs, produziram mais de 18 milhões de afegãos com necessidade de ajuda humanitária – desde a necessidade de abrigo, alimentação, acesso a água potável, educação ou cuidados básicos de saúde (o dobro daquilo que se verificava há um ano atrás, de acordo com dados do International Rescue Committee) – prevendo-se uma subida deste número à medida que a violência vai escalando no país. As violações dos direitos das minorias, as imposições e o medo causado junto de mulheres e raparigas tem feito com que muitos afegãos não tenham alternativa a não ser fugir do seu país, uma vez que ali correm perigo de vida.

Falamos de pessoas, como todos nós, que fogem de uma visão do mundo e da vida da qual não gostam tanto ou mais do que nós, europeus. Fogem do extremismo islâmico e da imposição da sharia, ou lei islâmica, que prevê a execução pública de assassinos, o apedrejamento de adúlteros, a amputação de mãos a ladrões, a obrigação de os homens deixarem crescer a barba e as mulheres usarem burka. Onde são banidas a televisão, a música e o cinema.

Em 2015 a Europa viu-se a braços com a chegada de um fluxo migratório tão intenso, em quantidade e num curto espaço de tempo tão reduzido, que colocou em crise dois princípios fundadores do projeto europeu (o Princípio da Solidariedade e o Princípio da Partilha de Responsabilidades entre Estados-membros) e os seus mecanismos de gestão de fluxos e políticas migratórias (desde a crise do Sistema de Dublin, à incapacidade do Sistema Europeu Comum de Asilo fazer face a tantos pedidos de asilo), assim como foi incapaz de impedir as milhares de mortes ocorridas no Mediterrâneo. Este fluxo migratório resultou na chegada de mais de um milhão de refugiados sírios à Europa, de acordo com dados das Nações Unidas.

Este movimento migratório, o maior desde o fim da II Guerra Mundial, foi gerador de uma enorme crise humanitária que nos dias de hoje ainda se vive, em especial nas ilhas gregas de Lesbos, Samos, Kios e Kos, onde permanecem mais de 56 mil requerentes de asilo em campos de refugiados, sem quaisquer condições de vida dignas.

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Com as negociações sobre o Novo Pacto Europeu para as Migrações sem desenvolvimentos e com muitos Estados-membros a adotar medidas que violam o Direito Internacional, 2021 pode, sem grandes dúvidas, ser o ano da crise dos refugiados afegãos na Europa.

No Afeganistão a situação é particularmente sensível para todas as minorias e para as mulheres e raparigas. De acordo com dados das Nações Unidas, 80% das pessoas que se viram obrigadas a fugir do Afeganistão desde o fim de maio são mulheres e raparigas. Mais de 400 mil pessoas já se viram obrigadas a fugir das suas casas, tendo mais de 120 mil afegãos fugido das zonas rurais do para as grandes cidades, em especial para a província de Cabul. Em Cabul a situação permanece bastante tensa, em especial junto ao aeroporto, onde muitos afegãos tentam desesperadamente encontrar forma de abandonar o país.

Apesar do Irão e do Paquistão acolherem cerca de 90% dos refugiados afegãos, não faltará muito tempo até que estes comecem a ser empurrados de volta para o Afeganistão ou para outros países vizinhos – face à incapacidade dos sistemas públicos de assistência social, saúde e educação destes países em responder às suas necessidades. E assim, muitos serão empurrados do Irão para a Turquia e da Turquia, país que no mundo mais refugiados acolhe no seu território, para a Europa. E é a partir daqui que, porventura, terá início uma nova crise.

O passado europeu em lidar com crises migratórias e fluxos de refugiados não constitui exemplo nem deixa para a história boas memórias. A resposta europeia à crise dos refugiados sírios de 2015 deixou mais problemas do que aqueles que resolveu – nomeadamente, a crise humanitária vivida nas ilhas gregas, a dependência de uma Turquia cada vez mais iliberal e a incapacidade de uma resposta comum às matérias de asilo e migrações.

Mas não é apenas a falta de uma resposta comum europeia que nos poderá assustar na forma como a Europa poderá responder a uma eventual crise de refugiados afegãos. A forma como, individualmente, cada Estado-membro tem lidado com as questões de asilo e migração deixa fortes suspeitas que a uma eventual nova crise de refugiados, a Europa não seja capaz de oferecer uma resposta adequada ao seu património ideológico e de acordo com as suas responsabilidades internacionais.

Depois da Dinamarca querer reenviar refugiados sírios para Damasco, considerando esta uma zona segura, e da Alemanha suspender a proibição geral de reenvio de refugiados sírios para o seu país de origem, além dos sucessivos relatos de push backs realizados pelas autoridades marítimas gregas e da forma como a Lituânia lida com a nova rota migratória Iraque-Bielorrússia-Lituânia (com a análise sumária de pedidos de asilo e erguendo mais de 680 km de arame farpado ao longo da sua fronteira), surgem agora relatos vindos da Croácia e da Grécia.

De acordo com uma notícia da Aljazeera, refugiados que tentam entrar em território europeu pela Croácia estão, deliberadamente, a ingerir substâncias perigosas (incluindo diversos opiáceos) na esperança que, uma vez apanhados pela polícia, sejam levados para o hospital ao invés de serem enviados para o seu país de origem ou para fora de território europeu, sem que lhes tenha sido dada a oportunidade de realizar o seu pedido de asilo – numa clara violação do Direito Internacional e dos Direitos Humanos. A Grécia, por outro lado, afirma já ter construído um muro de 40 quilómetros para deter a possível vaga de refugiados afegãos, com destino à Europa.

Por fim, assistimos a seis países europeus – Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda e Grécia – a quererem manter o reenvio forçado de afegãos para o seu país de origem, mostrando uma absoluta indiferença perante a atual situação que se vive naquele país. Inclusive, escreveram à Comissão Europeia afirmando que interromper o reenvio forçado de afegãos para o seu país de origem enviaria um sinal errado e que, muito provavelmente, motivaria a que muitos outros afegãos deixassem as suas casas para virem para a Europa.

Tendo por base estas premissas, conseguirá a Europa preparar-se para responder com eficácia, humanidade e respeito pelos Direitos Humanos a uma eventual chegada de refugiados afegãos a território europeu? Irá ser capaz de apoiar, em especial, os Estados-membros da fronteira a Sul (Grécia e Itália)? Conseguirá fazer com que a aplicação da solidariedade e partilha de responsabilidades entre Estados-membros seja de facto uma realidade? Ou iremos assistir à criação de mais campos de refugiados nas ilhas gregas, onde já se acumulam milhares de requerentes de asilo sem condições dignas de vida? Ou continuaremos a assistir a atrasos injustificáveis na análise dos pedidos de asilo? Manter-se-á a aplicação de push-backs realizados por forças de segurança de vários Estados-membros para países fora do espaço europeu e numa clara violação do Direito Internacional? Será a FRONTEX capaz de impedir milhares de mortes no Mediterrâneo e garantir a aplicação da legislação europeia em matéria de asilo?

Não tenho, para já, resposta para estas questões, mas tendo em conta o piorar da situação vivida no Afeganistão e uma possível chegada de refugiados afegãos a território europeu, com base na ausência de desenvolvimentos na aplicação do Novo Pacto Europeu para as Migrações e na forma como alguns Estados-membros lidam, isoladamente, com as questões do Direito de Proteção Internacional, temo que 2021 possa ser ainda mais desumano e mortífero do que o verão de 2015.