Quando, em 1978, Mário Soares expressou a necessidade de se meter o socialismo na gaveta para salvar a democracia, consolidou definitivamente o Processo Constitucional em Curso que Ramalho Eanes tinha possibilitado com o 25 de Novembro de 1975. Com o fortalecimento da democracia, esvaneceu-se irreversivelmente o espectro da ditadura comunista. Portugal é hoje um Estado de Direito sustentado no princípio da separação de poderes. Ora, aparentemente, o grupo de Intervenção e Resgate Animal (IRA) prefere a concentração de poderes.

O mundo actual evidencia uma acentuada propensão para a polarização e/ou radicalização. Em vez de se potenciarem os instrumentos que a democracia exalta, como o diálogo e o compromisso, a escolha recai na decisão unilateral, sobre qual o comportamento a ter ou a seguir. Este tipo de conduta é sectária e apenas promove a exclusão. Não conheço nenhum aspeto positivo no sectarismo ou na exclusão. A democracia é a procura da razoabilidade. Nenhuma parte conseguirá realizar 100% do que defende. É sempre saudável ouvir as ideias dos outros.

Já escrevi sobre o PAN nas minhas crónicas. Por ser um pluralista convicto, apesar de não me rever em pontos fundamentais que o PAN advoga – a humanização e/ou antropomorfização dos animais não dignifica a sua condição natural, não passando de mais um exemplo (entre outros) da arrogância humana – ajudei a consolidar o PAN como partido político. Tenho amigos no PAN com os quais mantenho um contraditório saudável, mas não votarei no PAN.

A reportagem da TVI sobre as atividades do IRA (um acrónimo deveras sugestivo e significativo), colocou o PAN no centro de um turbilhão devido à eventual ligação da chefe de gabinete do deputado André Silva, Cristina Rodrigues, a este grupo, cujas metodologias de actuação me parecem questionáveis. No entanto, devo dizer que não dou como validadas as suposições dos jornalistas Ana Leal e André Carvalho Ramos. E o PAN, muito bem, já repudiou o comportamento do IRA.

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Quando o IRA apareceu no Facebook, uma das minhas amigas convidou-me para gostar da página. Não aceitei o convite por não gostar de caras tapadas. Quem se prontifica para ajudar, para fazer o bem, não tem necessidade de esconder a cara. Por outras palavras, quem não deve não teme. Para mim, é tão simples como isto: os cidadãos de bem manifestam-se de consciência tranquila e de face visível.

Se eu tiver que partir um vidro dum carro para salvar uma criança ou um animal não vou pôr uma máscara na cara para o fazer. E, depois de partir o vidro, estarei disponível para pagar os estragos. Só não assumirei esse encargo se o proprietário do carro assim o quiser. Embora tenha agido com boa intenção, não deixei de praticar um acto ilícito. Os fins nunca justificam os meios!

A causa animal é uma boa causa. Ultrapassa a minha compreensão o mau trato aos animais. Mas daí até aceitar práticas ilegais como forma de resolução desta questão, vai uma distância considerável. O que o IRA está a conseguir, para além de pôr em causa a causa animal, é radicalizar ainda mais os discursos e as posições.

A injustiça ou a justiça, a ilegalidade ou a legalidade não podem ser determinadas por um qualquer grupo de cidadãos. Existem fóruns e instâncias específicas para tal. Supletivamente, note-se que não é possível comparar o IRA à polícia porque esta é um agente da autoridade reconhecido e mandatado para o efeito, que, regra geral, apesar dessas prerrogativas, só entra em casas particulares com um mandato judicial.

Este assunto é demasiado grave. A todos os níveis. Algo está substancialmente errado quando o Estado permite que alguém determine o que é a justiça e que a pratique pelas suas próprias mãos. A serem comprovadas estas suspeitas, se nada for feito e se nenhuma punição for aplicada o que é que impede a aparição de outros “IRAs”? O que impede o abuso de poder de um grupo como o IRA? O que é que impede o aparecimento dum outro qualquer grupo de indivíduos de cara tapada que, decidindo que não gosta da maneira como eu me visto ou como me alimento, invade a minha casa para fazer (a sua) justiça?

Dizem que há razões para os membros do IRA terem a cara tapada. Estão enganados. Não há! E o que estes deviam fazer era mostrar publicamente as faces. Só estão a subverter todos os valores e causas que dizem defender. Até admito que não seja essa a sua intenção, mas comportam-se como juízes e carrascos em causa própria.

Enquanto agirem desta maneira não terão o apoio de cidadãos como eu.

Politólogo, Professor convidado EEG/UMinho