Há dias Daniel Oliveira assinou um artigo de fundo na revista do Expresso no qual afirma, e cito-o, que “só do território que hoje corresponde a Angola os portugueses arrancaram, entre 1501 e 1866, 5,7 milhões de almas”. Esta afirmação está errada porque Daniel Oliveira atribuiu a Portugal a totalidade da exportação de escravos feita a partir daquilo que os autores da Slave Trade Database designam por “West Central Africa and St. Helena”, ou seja, toda a costa ocidental africana a sul do cabo Lopez, no Gabão, portanto uma extensão bem maior do que a da actual Angola. Sucede, para além disso, que nesse total de 5,7 milhões de escravos transportados dessa região através de Atlântico se engloba o tráfico negreiro feito por ingleses e outros europeus a partir dos portos do rio Zaire e zonas adjacentes, e o que foi feito pelos brasileiros. Como já referi num anterior artigo, no Observador, de 1822 em diante (ou de 1825, se preferirmos o ano em que Portugal reconheceu a secessão da sua antiga colónia) o tráfico negreiro foi feito pelo e para um Brasil já independente. Como é óbvio a partir de 1822-25 esse tráfico deixou de poder ser contabilizado como português e passou a ser brasileiro. Em suma, é absolutamente errado atribuir a Portugal sozinho a totalidade do tráfico de escravos daquela extensa região africana.
Dirão que isto é, apenas, um detalhe, mas a História também deve ser feita de detalhes significativos e, sobretudo, com rigor. Ora, há aqui um óbvio desleixo com os factos e um manifesto e persistente erro. Não sei se esse erro decorre de distração ou de outra causa qualquer nem isso agora importa. O que importa é que há, em Portugal, muita gente da extrema-esquerda politicamente correcta que rejubila com certos números desde que eles sejam negativos para o país, e que, sendo indiferente aos erros de facto, é estanque a todas as explicações. O engano de Daniel Oliveira só importa porque ele é mais do que um pequeno lapso de uma pessoa apenas. Na verdade, lapsos desses são frequentes e são um paradigma da forma como os radicais de esquerda abordam estas questões. Essas pessoas estão-se nas tintas para a verdade e a exactidão. A sua é uma posição meramente política, não estão interessadas em saber e perceber, apenas em agitar. O que lhes interessa é carregar nas cores escuras e, por isso, agarram-se com unhas e dentes a números bombásticos, sem se assegurarem da sua veracidade, porque quanto pior, melhor.
Há também, na esquerda, quem ache chocante ou obsceno estar a discutir números e a fazer uma contabilidade discriminada e comparada, nação a nação, em matéria tão sensível, como se o problema fosse um lugar no ranking ou o número de milhões de escravos. Os que consideram assim as coisas confundem sentimento e emoções com estudo e conhecimento e ignoram que a historiografia da escravatura está estreitamente ligada, desde o seu início, à questão da quantificação.
Até à década de 1960 ninguém sabia muito bem quantos escravos negros teriam sido levados para as Américas. Avançavam-se números fantasiosos, como 40 milhões, ou mais, mas sem grande base empírica e documental. Foi Philip D. Curtin, um grande historiador norte-americano já desaparecido, que pela primeira vez estudou a fundo essa questão. Publicou o seu estudo em 1969 num livro intitulado The Atlantic Slave Trade: a Census, baixando as estimativas para cerca de 11,5 milhões de pessoas. Curtin foi atacadíssimo, então. Chamaram-lhe racista, disseram que o seu estudo era uma fraude, e por aí fora. Mas ele tinha basicamente razão. De Curtin até aos nossos dias a questão continuou a ser estudada e aprofundada, sobretudo por David Eltis e outros, que estão na origem da muito citada Slave Trade Database, e que beneficiando de bastante mais investigação e de mais elementos relativos ao século XIX, o período em que o tráfico foi ilegal, fixaram o total à roda dos 12,5 milhões de pessoas. Desses, e seguindo os critérios e dados da Slave Trade Database, 4,5 milhões serão atribuíveis a Portugal; 3,4 milhões à Grã-Bretanha; 1,4 milhões à França; 1,3 milhões ao Brasil; etc. Ou seja, os portugueses levaram menos escravos de toda a África do que os 5,7 milhões que Daniel Oliveira queria que tivessem levado só de Angola.
O facto de os portugueses terem sido, num cômputo geral, os maiores transportadores de escravos africanos através do Atlântico não implica que fossem piores do que os outros povos. Esse facto foi, isso sim, a consequência de circunstâncias históricas — o acordo de Tordesilhas, o beneplácito papal, etc. — que lhes permitiram ter, durante cerca de 200 anos, de meados do século XV a meados do XVII, o monopólio da relação da Europa com a África ocidental subsariana. Depois, quando as circunstâncias mudaram, esse monopólio cessou e no período que vai de 1640 a 1808, ano em que puseram fim à sua participação no odioso comércio, foram os britânicos que assumiram o papel de maiores transportadores transatlântico de escravos negros.
Em suma, nisto dos números muito depende do que seleccionamos e da forma como queremos apresentá-lo. Ora, é lamentável que haja em Portugal tanta gente que, à semelhança do que fez Daniel Oliveira, no Expresso, se compraz em apresentar o nosso país na pior luz possível, com a agravante de estar a utilizar, para o efeito, dados incorrectos e números martelados. Devo acrescentar que o referido texto do Expresso, cujo tema central é o racismo, me suscita mais críticas, que deixarei para um próximo artigo. Aqui e agora limito-me a focar o problema dos números e a fazer notar o seguinte: Daniel Oliveira censura os portugueses por alegadamente se recusarem a conhecer e a debater o passado colonial do país, e congratula-se por haver, agora, “uma elite” — é assim que os designa — “de académicos e activistas negros” que iniciou esse debate, assim contribuindo “para o advento de uma narrativa alternativa à dominante”. Ora, ser “alternativa” não é nenhum selo de qualidade. A dita “narrativa alternativa” teria todo o cabimento se fosse verdadeira; o problema é ela ser falsa ou inexacta. O que Daniel Oliveira e outros promotores da tal “narrativa” nos têm oferecido à laia de conhecimento não é informação isenta e escorreita, mas sim adulteração e ideologia, como se vê pelo exemplo aqui analisado. Isso é gato por lebre e deve ser rejeitado.