A ambição da nova Comissão Europeia de marcar o debate europeu com o New Green Deal está em risco de ser inteiramente torpedeado pela investida da França, da Alemanha, da Polónia e da Itália ao coração da política comunitária: a política de concorrência. Na semana passada, numa carta aberta à Comissão Europeia, estes países exortaram a Comissão a avançar com a revisão da política de concorrência, nomeadamente uma maior exigência na avaliação de aquisições por parte de empresas fora da UE apoiadas por Estados (uma medida direcionada diretamente à China) e a flexibilização de algumas regras para operações entre empresas europeias.
O que parece ser um debate de natureza mais técnica e que só preocupa especialistas, é na realidade uma tentativa de influenciar nas competências exclusivas da UE, isto é, nas políticas onde os Estados-membros aceitaram até hoje que a neutralidade de uma entidade supranacional é a mais vantajosa para o bem de toda a União.
De facto, a política de concorrência é, juntamente com a política de coesão, um dos garantes do mercado único. Para pessoas, bens, serviços e capitais poderem circular livremente dentro da UE, é fundamental a existência de uma política de concorrência que limite a capacidade dos Estados mais fortes e das empresas maiores restringirem o mercado a potenciais concorrentes, tornando bens e serviços mais caros para todos os cidadãos.
Nos últimos anos, sobretudo com a Comissária Vestager, o poder e a visibilidade da Comissão em matéria de concorrência aumentou, provocando irritação não só em Estados terceiros cujas empresas foram alvos de processos, mas também em Estados-Membros como a França e a Alemanha que viram potenciais fusões entre empresas suas chumbadas. A política descomprometida de concorrência da Comissão face aos Estados-membros está em choque frontal com as aspirações, em especial francesas, de criar grandes empresas ou “campeões” europeus que possam competir com as empresas americanas e chinesas num mundo em que cada vez mais o poder comercial significa poder político e o poder de definir os próprios valores civilizacionais.
E se a questão da capacidade de fazer face a gigantes que vêm do exterior tem uma dimensão de proteção do nosso modo de vida, também é verdade que uma política de concorrência mais flexível para “campeões” europeus põe riscos sérios de contestação política interna. Uma política mais favorável a grandes empresas do centro da Europa pode ser vista como ilegítima perante cidadãos de países periféricos ou países economicamente mais frágeis, o que no limite pode acentuar o discurso populista. Para além do mais, a solidez do mercado único, que defende a política de concorrência, é em si uma sustentação da capacidade de negociação política e estratégica da UE perante outros Estados e em fóruns multinacionais.
O debate é mesmo sobre o espírito europeu. De um lado, a França e a Alemanha argumentam que num mundo em que um dos principais concorrentes externos defende valores diferentes dos europeus e não tem limites de natureza social ou ética à exploração do trabalho e dos dados pessoais, as imposições da política de concorrência colocam a Europa numa posição de fraqueza e sem capacidade de defender os seus interesses. Por outro lado, a Comissão Europeia e países mais pequenos como a Suécia, a Dinamarca, a República Checa e a Holanda já manifestaram receio que isto seja apenas uma desculpa para criar gigantes no centro da Europa tornando os países mais pequenos e os países periféricos, cada vez mais dependentes. Um país pequeno e periférico com os olhos postos no Atlântico como Portugal não pode passar ao lado deste debate, para defender uma política de concorrência europeia enérgica, ou seja, que sirva os interesses de Portugal.