Portugal sempre gostou de originalidades. Já teve, com Ramalho Eanes, um Presidente da República que sonhava ser líder partidário; já teve, com Mário Soares, um socialista que meteu o socialismo na gaveta; já teve, com Paulo Portas, um eurocéptico que passou a euroentusiasta; já teve, com António José Seguro, um líder da oposição que ganhou eleições e foi dispensado por incompetência; já teve, com António Costa, um suposto derrotado que se transformou num efectivo vencedor.
Portugal já teve tudo isto — e muitas outras coisas irreproduzíveis num artigo de jornal –, mas nunca tinha tido, jamais, em tempo algum, fosse de que forma ou feitio fosse, um Presidente da República que julgasse ser primeiro-ministro.
Agora (toquem as trombetas, repiquem os sinos, lancem os foguetes), já tem. Na entrevista que deu à SIC, para comemorar com orquestra e fanfarra um ano de Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa vestiu o fato, a gravata e os sapatos do primeiro-ministro.
Primeiro, explicou a polémica da TSU como se estivesse num gabinete de São Bento: a subida do salário mínimo era inevitável porque estava no programa do Governo; o primeiro-ministro temeu os efeitos dessa medida nas pequenas e médias empresas, nas misericórdias e nas IPSS; e, por isso, promoveu a descida da TSU como a forma ideal de evitar efeitos nefastos na economia. Mais: a descida da TSU era um filho pródigo da sacrossanta Concertação Social. Melhor: a descida da TSU não era um encargo para a Segurança Social. Mais e melhor: a descida da TSU “era um sinal”, imagina-se que divino, para atrair o investimento privado.
Depois, vieram os restantes milagres económicos. Para o primeiro-ministro Marcelo Rebelo de Sousa, o défice está a diminuir e a economia está a crescer. E a dívida? Bem, aí as notícias são ainda mais incrivelmente super-espectaculares: a meritória acção do Governo está a levar a uma “reestruturação da dívida” sem perigo nem dor.
Por fim, a banca. A situação no BPI está “definida”, o BCP está num processo “positivo”, a Caixa Geral de Depósitos vai ter todos os seus administradores em breve e o processo de recapitalização foi um sucesso; e, imagine-se, “há várias soluções alternativas” e “há vários caminhos possíveis” para o Novo Banco.
Sobre o Governo, ouvem-se harpas angelicais. E sobre a oposição? “Não faço comentários”.
A meio da entrevista, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma comparação que é todo um tratado. Quando lhe perguntaram se achava que aparecia demasiado, disse que não e comparou-se com Barack Obama, com Angela Merkel, com Theresa May e com François Hollande, que falam todos os dias. Pequeno detalhe: o primeiro é Presidente de um sistema presidencial, a segunda é chanceler, a terceira é primeira-ministra e o quarto é um Presidente com poderes executivos. Todos eles, de uma forma ou de outra, governam — e têm de explicar aos eleitores as decisões dos seus governos.
Marcelo Rebelo de Sousa julga que está noutro país, julga que jurou outra Constituição e julga que preside a outro regime. No meio de tanta baralhação, conseguiu tornar-se no responsável último do atual Governo. O grave não é que o Presidente julgue que uma vitória de António Costa é uma vitória de Marcelo; o grave é que não perceba que, a partir de agora, uma derrota de António Costa será uma derrota de Marcelo. Para o primeiro-ministro, esta entrevista foi um alívio; para o Presidente, foi uma armadilha.