Não vou comentar as negociações do Orçamento. Não tentarei adivinhar o que querem o Governo e as oposições. Parece-me, porém, ter percebido o que queria o país quando votou a 10 de Março: libertar-se do governo do Partido Socialista. Mas nada neste mundo é sem equívoco. Esse voto podia ser interpretado de duas maneiras: uma abrangente, e outra restrita. Na interpretação abrangente, os portugueses votaram para ser governados de outra maneira. Na interpretação restrita, os portugueses votaram apenas para serem governados por outro partido, mas da mesma maneira. Creio não haver dúvidas sobre qual a interpretação preferida pelos actuais governantes.

Não falo de todos os ministros. Falo dos líderes políticos do governo. Se por acaso acreditam em alguma coisa, é que os seus antecessores socialistas descobriram a maneira certa de exercer o poder. As regras são simples. Primeira: clientelizar pensionistas e funcionários – e temos assim aumentos salariais para quase metade da função pública. Segunda: dirigir os benefícios, não aos cidadãos em geral, mas a certos segmentos, de modo a fomentar identidades assentes na dependência do Estado – e temos assim o IRS jovem. Terceira: uma dose de wokismo para aplacar o comentário televisivo – e temos assim a relutância de definir “mulher” e o boicote a Israel. O fim do exercício é óbvio: fundar um bloco eleitoral grato ao governo, e por isso avesso a arriscar alternâncias. Foi assim que o PS saltou por cima de escândalos e fracassos para vencer eleições. Foi assim que “mudar”, um slogan recorrente no fim do século XX, desapareceu do linguajar político.

Dir-me-ão: a direção política do governo só mostra sabedoria. Trata de escalar o poder usando a escada mais segura. Mas há aqui um problema. No PS, isto não era apenas um expediente: era uma ideologia, de quem acreditava e propunha que a sociedade deve ser comandada pelo Estado. O PSD, ao longo de décadas, pareceu acreditar e propor outra coisa: um Estado apenas subsidiário de uma sociedade civil autónoma e empreendedora. Foi esse o projecto de Sá Carneiro em 1980, de Cavaco Silva em 1985 ou de Passos Coelho em 2011. Era um projecto “liberal” e patriótico, porque concebido como a via adequada para tornar a nação mais livre, próspera e coesa. Apelava, ao mesmo tempo, à aspiração de independência pessoal e ao brio colectivo. Mobilizou gerações que desejavam ter casa própria, mas também viver num país a subir nos rankings da UE. Esse projecto, apesar do que o PS fez crer, ainda vale votos, ou não se teria passado nada a 10 de Março.

A liderança do governo não pode renegá-lo: primeiro, porque nunca conseguirá desviar para si toda a clientela do PS, e precisa do eleitorado tradicional do PSD; segundo, porque existem agora à direita outros partidos para lhe disputar essa herança e esses votos. Por isso, o governo evoca Cavaco Silva, e o seu mítico “deixem-me trabalhar”. Mas em 1985, Cavaco Silva não trabalhava simplesmente para ganhar eleições. Queria ganhar eleições, claro. Mas rompendo com o socialismo herdado do PREC. Não se propunha exercer o poder como os outros, mas libertar a sociedade civil e deixar os cidadãos, no novo contexto europeu, procurar o crescimento económico e a mobilidade social. Mais tarde, fez até esta coisa que ia contra toda a ciência de eleger maiorias: liquidou o monopólio estatal da TV. Hoje, porém, o que o actual governo parece propor-se é ganhar eleições fazendo o mesmo que o PS. O seu “deixem-nos trabalhar” soa cada vez mais como “deixem-nos ser como o PS”. Talvez não seja o que o país quer, e não é certamente o que o país precisa.

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