Não poderia haver maior ironia histórica. Mas também não poderia haver maior celebração. No ano em que se cumprem os 50 anos do 25 de Abril, o pronunciamento militar de tipo clássico que rapidamente deu lugar a uma revolução política e social num país em transe depois de décadas de mordaça, o país caminha para uma encruzilhada. A única certeza que temos é que, depois das eleições de 2024, o regime, tal como entendido nos últimos 50 anos, vai mudar. Isto é um motivo de celebração. Não necessariamente pela ascensão do Chega, que considero uma agremiação partidária profundamente negativa para a democracia Portuguesa, mas pelo facto da democratização de há 50 anos ter colocado nas mãos do povo o seu destino. A acreditar nas sondagens, o povo quer mudança, no sentido mais lato do termo e não apenas da rotação de poder nos principais partidos do regime. Se essa mudança será boa ou má para o país ainda estamos para perceber. No entanto, a maior celebração do 25 de Abril não consiste em encomendar a curadoria de exposições ou obras académicas aos amigos do regime, nem em grandes manifestações grandiloquentes na Assembleia da República. A maior celebração são as eleições democráticas em que todos os cidadãos são iguais e podem votar livremente e expressar as suas ideias.
Outro motivo para celebrar os 50 anos de democracia foi o verdadeiro festim de debates políticos que ocorreu nas últimas semanas nas televisões portuguesas. Os debates poderiam ter sido melhores? Sem dúvida. Há políticos mal preparados e outros grosseiros e sem modos? Também é verdade. Há jornalistas que fazem péssimas moderações? Completamente. No entanto, os debates foram a democracia Portuguesa em acção e todos os partidos, da extrema-esquerda à extrema-direita, tiveram oportunidade de expressar os seus pontos de vista.
No debate principal, entre os candidatos que, realisticamente, têm fundadas expectivas de conseguirem chegar a primeiro-ministro, creio que houve um empate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro. O primeiro beneficiou, indiscutivelmente, de partir com as expectativas muito baixas – depois de uma série de debates manifestamente maus – e, naturalmente, de ter feito uma primeira metade do debate fortíssima. Para além disso, mais até por incompetência de Montenegro, Pedro Nuno Santos não foi chamuscado pelos temas difíceis sobre o seu período de governação, que me eximo de enumerar por serem conhecidos por toda a gente. Montenegro, pelo contrário, depois de titubear no primeiro terço do debate, conseguiu ser bastante mais sólido nos debates sectoriais, nomeadamente na saúde e educação, mostrando uma preparação técnica que deixa Pedro Nuno Santos a léguas. É certo que perdeu completamente nas questões das reformas. É evidente que todos sabemos que o PS tinha intenção de cortar as reformas, basta, de resto, ver o documento que a Ministra da Segurança Social de Costa fez entrar na Assembleia da República. No entanto, não o fez. Nenhuma reforma foi cortada. Para quem precisava de reconciliar-se com os pensionistas, Montenegro esteve mal e falhou o objectivo.
Por último, neste debate Pedro Nuno Santos fez saber que o PS não apresentará, nem votará a favor, de qualquer moção de rejeição de um governo minoritário do PSD. Confesso que fiquei baralhado. Não com a declaração do secretário-geral do PS esta semana porque foi claríssima. A minha confusão vem da absoluta contradição entre aquilo que afirmou contra Montenegro e as certezas contundentes com que se apresentou no contexto dos Açores e as afirmações que proferiu, no final do Janeiro, em entrevista à CNN dizendo: “é muito difícil o PS viabilizar um governo minoritário da AD. Não há impossíveis, mas é muito difícil isso acontecer”. Face a estas declarações, das duas uma. Pedro Nuno Santos mentiu numa das intervenções, possivelmente para efeitos de maximização de votos. Ou, numa perspectiva mais benigna da natureza humana, mudou de opinião, o que seria, a meu ver, não só saudável, mas até bom para a democracia Portuguesa. Seria bom que o PS se juntasse ao PSD no cordão sanitário contra o Chega. Contudo, a inconstância de opiniões de Pedro Nuno Santos não é de molde a deixar nenhum eleitor sossegado. Será que dentro de duas semanas assistiremos a nova mudança de opinião? E depois das eleições?
Depois dos debates a democracia Portuguesa está num momento de transformação mas, ao mesmo tempo, profundamente vivo. As mudanças que ocorreram na sociedade ao longo destes últimos 50 anos estão, finalmente, a produzir efeitos sob o ponto de vista da competição partidária. O Comunismo ortodoxo, marxista-leninista, está no seu ocaso, enquanto a esquerda verde e Europeia está a começar a despontar de forma mais sólida. Temos finalmente um partido liberal viável, que representa uma franja que, embora pequena dada a pobreza do país, se revê nas posições políticas que favorecem o mercado. Por último, temos ainda a extrema-direita em grande força. Apesar de ser politicamente incorrecto fazer esta afirmação, sob o ponto de vista da congruência política, o Chega criou um veículo político para canalizar os desejos de uma parte da população. De acordo com vários trabalhos académicos, que mostravam grandes franjas da população Portuguesa como alienadas da política e profundamente insatisfeitas com as instituições, a procura por este tipo de soluções políticas existe há muito tempo. O Chega articulou e providenciou a oferta para este tipo de posicionamento político. A oferta juntou-se, assim, à procura. Sob vários pontos de vista, os 50 anos da democracia Portuguesa são um sucesso. Celebrar-lhos-emos com umas eleições em que o povo pode escolher o seu destino. Sejam quais forem os resultados não há maior ode à democracia do que esta.