1 Portugal tem um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que persegue o desígnio de ser “universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito” (Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa). É uma das maiores riquezas nacionais, que permitiu a Portugal atingir alguns dos mais altos indicadores de saúde do mundo. A lei que levou à sua criação (Lei nº 56/79) foi aprovada em 15 de setembro de 1979. Este é o contexto português para o desenvolvimento de um sistema de saúde e a base para todas as questões e considerações de qualquer discussão sobre políticas de saúde em Portugal.
2 O SNS é financiado directamente pelo Orçamento do Estado, correspondendo a pouco menos de 10% do seu valor. Há uma parte dos cuidados e medicamentos que são pagos directamente pelos utilizadores. A cobertura também ainda não é completamente universal: algumas áreas não estão ainda devidamente integradas (visão, saúde oral e termalismo são alguns exemplos).
3 A ADSE (Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado – há uma entidade semelhante para os militares) já existia 16 anos antes do SNS, desde 1963, como esquema de proteção na doença aos servidores civis do Estado, sob a tutela do Ministério das Finanças, numa altura em que não existia um sistema público de saúde organizado e o essencial dos cuidados estava a caso das Misericórdias. Entre 1963 e 2014, a ADSE foi obrigatória para os funcionários públicos. Desde 2014 é facultativa. No início, a contribuição era de 0,5% do vencimento, sendo actualmente de 3,5%.
4 A ADSE é, na prática, um seguro de saúde que reembolsa despesas de saúde do beneficiário e dependentes, muitas das quais não são cobertas por outros seguros concorrentes. É um seguro social, cujo prémio é proporcional ao vencimento e inclui dependentes, por oposição aos seguros comerciais, cujos prémios são proporcionais ao risco e têm carácter individual. Para a maioria dos beneficiários é um seguro mais barato e com mais coberturas do que a maioria dos seguros comerciais. De acordo com um estudo de 2016, só para indivíduos mais jovens, com vencimentos maiores e menos dependentes da família pode compensar ter um seguro privado em vez de ADSE. Por outro lado, a vantagem de aderir à ADSE vai aumentando com a idade e com o aumento da estrutura familiar. Um outro estudo realizado pela DECO concluiu que um plano privado de saúde apresenta algumas limitações comparativas, nomeadamente as exclusões (por exemplo, hemodiálise, quimioterapia, fisioterapia), períodos de carência, franquias e limites (por exemplo, estomatologia), entre outras. Além disso, os seguros comerciais de saúde têm duração anual, pelo que não é garantido que continue a poder usufruir da sua cobertura nos anos vindouros, ao contrário da adesão à ADSE que pode ser para a vida.
5 Sendo um benefício social proporcionado pela entidade patronal (o Estado) aos seus funcionários, uma espécie de bónus do pacote salarial, também não faz sentido exigir que o mesmo Estado garanta um seguro de saúde social aos outros trabalhadores que não são seus funcionários, sobretudo num contexto em que temos um SNS universal. Essa iniciativa deveria caber às correspondentes entidades patronais, designadamente as confederações de patrões. É com a participação de todos que se deve fazer a integração e a diversificação.
6 Por outro lado, como os funcionários públicos pagam os seus impostos como qualquer outro cidadão, contribuindo assim para o Orçamento do Estado e, por essa via, para o SNS, não faz qualquer sentido que a despesa da ADSE seja feita no SNS. Se assim fosse, os funcionários públicos que optam por ter ADSE, estariam a pagar duas vezes os seus cuidados de saúde. Os fundos geridos pela ADSE não são, de modo nenhum, propriedade do Estado, mas sim dos funcionários públicos que para ele contribuem e não devem ser confundidos com o financiamento do SNS. É, por isso, errado que se considere que as entidades privadas convencionadas com a ADSE estejam a ser financiadas por dinheiros públicos. O dinheiro da ADSE deve, em consequência, ser gasto onde cada subscritor deseja, por sua vontade e iniciativa e, quando um beneficiário da ADSE recorre ao SNS, não devem ser usados fundos da ADSE para o pagamento das despesas, pois está a usar a cobertura que a sua cidadania (e pagamento de impostos) lhe dá, de acordo com a Constituição.
7 Acresce que a existência da ADSE tem também um efeito benéfico sobre o SNS, pois reduz a pressão sobre este.
8 No que diz respeito ao relacionamento com os prestadores de cuidados de saúde, a ADSE tem todo o direito de estabelecer uma tabela de preços para os diagnósticos e tratamentos dos seus beneficiários e os grupos privados têm todo o direito de aceitarem ou não os preços estabelecidos pela ADSE, ou de proporem novas tabelas de preços, que serão alvo de negociação. Do mesmo modo que existe liberdade de adesão à ADSE, também deve existir liberdade de adesão (e recusa) pelos prestadores. Não há nenhuma obrigação (nem sequer moral) por parte destes para fazer acordos com este ou outro seguro qualquer. Trata-se de opções legítimas de gestão e é completamente ridícula a acusação de chantagem neste contexto.
9 Quanto mais aderentes tiver, maior será a base de financiamento da ADSE. A oposição dos sindicatos é egoísta e, por isso, condenável. Recentemente aumentou o número de funcionários públicos que têm direito a aderir. A direcção da ADSE deve, por isso, trabalhar para que o seu seguro seja atrativo para os seus beneficiários, quer em termos de coberturas, quer em termos de número de prestadores, já que a definição do prémio é da competência do Governo.
10 A viabilidade económica da ADSE depende também do uso criterioso dos fundos que são confiados pelos funcionários públicos aos seus gestores. E aqui há um enorme trabalho de negociação a fazer, entre a ADSE e prestadores (hospitais, consultórios, laboratórios e outras entidades). Urge mudar de paradigma, do actual pagamento por acto, consulta ou exame, para pagamentos compreensivos, gestão integrada da doença, ou nos cuidados de saúde (meios de diagnóstico e tratamento), devidamente auditados externamente, que tragam valor aos seus beneficiários. É esse trabalho que falta fazer, sem ideologias nem estados de alma, apenas com a intenção de melhorar e oferecer uma cobertura e um serviço ainda melhores.
Porque há uma inevitabilidade matemática com que devemos contar: o crescimento económico do nosso país não chega para cobrir as necessidades de crescimento das despesas de saúde de uma população envelhecida como a nossa, baseando o financiamento da saúde apenas num sistema universal, de financiamento e gestão centralizados como o português.