Este 10 de Março de 2024, 49 anos depois do 11 que simbolizou o desequilíbrio do regime para a esquerda, virou o tabuleiro ao contrário. O regime acordou virado do avesso e talvez não tenha dado conta. Antes disso, porém, permitam-me que aqui faça um pedido de desculpas.
Por razões inexplicáveis, e contra muito do que penso e aqui fui escrevendo ao longo dos últimos anos, deixei-me convencer por uma ideia que a realidade me dizia que não era concretizável. Essa ideia ditava que o “não é não” se traduziria numa transferência utilitária do voto do centro e da direita para a Aliança Democrática, e residualmente para a IL. A realidade da votação de domingo demonstra que ela não podia ter concretização prática, pelo menos já não agora, e na verdade as razões que levam a essa não concretização são evidentes. Como várias vezes aqui expus essa evidência, estou sobretudo aborrecido por não ter tido o discernimento de distinguir desejos políticos da apreciação fria dos factos: que o PS provou do seu próprio veneno, perdendo votos para o Chega, sim, mas a AD não ganhou directamente e a prazo nada com isso.
A lógica do “não é não” podia ter tido – se tivesse, nunca dei isso por garantido – resultados em 2022, quando o Chega era uma força ultra minoritária. O PSD não escolheu esse caminho na altura, o que valeu uma maioria absoluta ao PS. Talvez mesmo agora tivesse funcionado, mas faltou sempre o lado B dessa estratégia. E esse lado B passava por algo que PSD e CDS já não são capazes de oferecer aos portugueses. Já lá vou.
Para já, fica um Governo frágil, depois de uma vitória ridícula, liderado por Luís Montenegro que não tem outro remédio que não passe por negociar medidas e orçamentos com André Ventura. O Chega já não pode ser colocado de parte da mesa dos crescidos: já não estamos a falar de um partido de um homem só, mas da representação de mais de um milhão de portugueses que merecem que a sua posição tenha respaldo em termos de negociação política. Sucede que a fragilidade do Governo da AD não é exclusivamente o facto de ter de negociar tudo e mais um par de botas. Não. Isso é a regra da democracia, acordos e cedências. Foi isso que António Costa fez com a esquerda em 2015, é legítimo que assim seja com Montenegro em 2024. O Chega não precisa de ir para o Governo, a AD não tem de dar uma cambalhota, mas excluir da normal negociação parlamentar um partido desta dimensão só produzirá o resultado inverso do pretendido. A fragilidade do novo Governo reside noutro facto: é que se a AD julga que será beneficiada caso Ventura chumbe um orçamento e com isso conduza o país a novas eleições, está enganada. O Chega já não é só um movimento ideológico de nicho, como foi em tempos. É uma força social de elevada representatividade. Representa grandes camadas da população, uma espécie de descamisados e renegados do sistema – ou, pelo menos, que assim se sentem.
O cenário agora é tripartido: o centro do regime mudou, de facto, da esquerda para a direita, com a AD ao meio. Mas é inevitável que a bipolarização cavada por António Costa em 2015 se concretize efectivamente, sob pena de só termos dois cenários possíveis daqui em diante: governos instáveis do centro-direita, governos de maior consistência à esquerda. A AD podia ocupar largamente esse espaço à direita e polarizar sozinha face ao PS? Talvez, insisto, mas agora é demasiado tarde. Se quiser polarizar e criar condições para governar, tornou-se inevitável o diálogo aberto com todas as forças.
Foi Pedro Nuno Santos quem disse o óbvio na noite de domingo: não há um milhão de racistas e fascistas em Portugal. Não há. Mas há problemas por resolver. Olhe-se para os resultados do Chega em concelhos como Loures, Sintra, Amadora, Seixal, Barreiro, Moita, Setúbal, Palmela, Sesimbra ou Odemira, e têm ali parte da resposta. Como têm no resultado do Algarve, da Guarda, de Castelo Branco, de Santarém, Évora, Beja ou Portalegre. Só um país mediático e político que vive exclusivamente na bolha do privilégio da capital teima em não ver o óbvio: há um país à margem do que se transmite nas televisões, do que se escreve nos jornais e do que se diz nas salas fechadas dos partidos.
Não vou aqui julgar se o aparecimento de Passos Coelho na campanha foi bom ou mau. Mas uma coisa é certa: sinalizou tudo isto com a questão da relação da imigração (que reconheceu como necessária) com a sensação de insegurança que é preciso vigiar e à qual é preciso responder. Caiu o Carmo e a Trindade. Aí estava o nazi, o racista, alguém que descurava as estatísticas da segurança em prol de uma mensagem populista. Deixem-me dar aqui um exemplo simples: vivi durante mais de 25 anos no concelho do Seixal, entalado entre dois bairros com problemas de integração de imigrantes, e durante boa parte desse período fui, como tantos outros à minha volta, vítima de pequenos crimes semanais (roubos, furtos, agressões, alunos em escolas com pistolas, etc.), e nunca vi ninguém apresentar uma queixa-crime. Há uma realidade que não vem nas estatísticas: é curioso até como os problemas de integração correm, sobretudo, em concelhos governados pela esquerda, e como o mainstream despreza, por desconhecimento, esta realidade que se vive quotidianamente às portas de Lisboa, onde vivem milhões de pessoas. Essa realidade não vem nas estatísticas a que recorrem comentadores: aí a têm espelhada nas urnas. É uma estatística que convinha não descurar. Adiante.
Esta eleição, além de empurrar o centro político para a direita, também demonstra algo em que tenho insistido largamente nesta coluna: mais do que entre a esquerda e a direita, o país vive dividido entre os de cima e os de baixo. A viragem à direita não é uma motivação ideológica, mas social. É que a esquerda perdeu os de baixo: o PCP não compreendeu a desindustrialização, e Bloco e Livre não representam mais que privilegiados urbanitas carregados de superioridade moral. Ao PS restaram os amorfos do sistema: resignados, pensionistas, reformados, funcionários públicos, dependentes do sistema redistributivo em geral. A AD ficou com a gama dos privilegiados reformadores suaves, a IL com os mesmos na categoria mais arrojada. O Chega ficou com aqueles a quem todos os outros, comunicação social incluída, têm passado os últimos anos a tratar como fascistas (e que, na verdade, não têm menos apreço pela liberdade e pela democracia que a generalidade dos portugueses). Talvez tenham começado a perceber o vazio de representatividade que aqui esteve sempre em jogo. É uma pena que um milhão de portugueses tivesse de manifestar esse descontentamento para que se percebesse. E, ainda que o tenham percebido, de uma coisa estou absolutamente seguro: não é a AD, não esta, salvo raríssimas excepções, que conseguirá dar corpo a esse vazio, cada vez mais representado pelo Chega e de forma mais convicta.
A resposta a esse vazio era o tal lado B de uma estratégia que, sem ele, sempre foi coxa: a capacidade de chegar aos que estão nas franjas da sociedade mediática e fora das bolsas mais politizadas. E a sensação que se tem, agora de forma mais evidente, é a de que, à direita, o Chega é a força ascendente por falta de concorrência. Como já por aqui escrevi, o partido não quer mudar nada. Simboliza também ele a continuidade do situacionismo por outros meios. E acena a uma multidão de legítimos descontentes com um sol que lhes diz que quando nasce é para todos. É uma aldrabice, naturalmente. Mas já ninguém quer saber. O país contaminou-se com a doença do fartismo, e é preciso uma coragem e uma força hercúlea para derrubar tudo isto: o situacionismo, o fartismo e, claro, todo um mar mediático que ainda não percebeu bem o que tem pela frente.