(…) e sentaram-se, confortavelmente, na primeira mesa de mármore do café O Morcego, propriedade do Senhor José, homem de 85 anos, que, com uma audácia e resiliência admiráveis, conseguiu manter o seu pequeno negócio vivo durante a pandemia. Filipa pediu um café pingado; João um café cheio; Maria uma água Luso (natural) e Catarina um guaraná.
– Estou farta deste maldito vírus… – atirou Maria, entre um murmúrio e um suspiro.
– Maldito Partido Comunista chinês que orquestrou tudo! – disse João convicto.
– Não sejas conspirador, João! – disse Filipa irritada.
– Conspirador? O Xi Jinping e o Tedros ocultaram isto durante meses – retorquiu João, num tom colérico.
– Não quer dizer que a China tenha criado o vírus! – atalhou Filipa.
– Temos de ter paciência… – disse Catarina, com uma voz apaziguadora, enquanto fitava o pelicano, com um olhar doce.
– Mais 687 casos hoje! Estou tão farta… – disse Maria, enquanto fazia scroll nas notícias que assaltavam o ecrã do seu telemóvel.
– Agradeçam ao Xi Jinping e ao Tedros – disse João.
– Lá estás tu… só sabes conspirar!! – disse Filipa.
– Meninos, tenham calma…va lá… – interveio Catarina, desfitando subitamente o pelicano e pousando os olhos em Filipa e João.
– O Tedros é um bom homem! Criou uma série de hospitais na Etiópia. Hoje, todos os etíopes têm acesso a cuidados de saúde, graças a ele! – lembrou Filipa entusiasmada.
– Sim, e também foi acusado de ter ocultado três epidemias de cólera quando era Ministro da Saúde na Etiópia – ripostou João.
– Humm – balbuciou Filipa – Estás outra vez a conspirar.
– Já não sei no que acreditar…– disse Maria.
– Na verdade… – respondeu João.
– Que não é a mentira que tu sustentas com conspirações… – disse Filipa, revirando os olhos.
– Meninos, que tal irmos beber um copo hoje? – disse Catarina, numa tentativa de mudar de assunto.
Filipa mordeu os lábios. Maria e João fitaram Catarina com um olhar de desaprovação. “O vírus à solta nas ruas a esventrar impiedosamente a humanidade e ela quer beber um copo?”, pensou João, enquanto um laivo de cautela lhe percorria a mente; em março, tivera a mãe internada nos cuidados intensivos. Em seguida, disse-lhe:
– Bom dia Catarina, estamos em pandemia. Caso não tenhas percebido ainda, os convívios em espaços públicos são de evitar.
– Estava a pensar que podia ser em minha casa, tonto – respondeu Catarina, corando levemente.
– És tão parvo, João – atirou Filipa.
– Filipa, posso estar sossegado? – perguntou João.
– Indignas-me. Vês sempre as coisas como és e nunca como são – replicou Filipa.
– Anaïs Nin a esta hora não, por favor. Deixa as citações para as tuas aulas de literatura – disse João.
– A Antártida ainda não registou nenhum caso de infeção!! – disse Maria extasiada, enquanto continuava a scrollar com o polegar.
– Podes imigrar para a Antártida, então – disse João, com sarcasmo.
– Podes ir dar uma volta – atirou Filipa, defendendo Maria.
– E vou mesmo – disse João, enquanto, ofendido, se levantava.
– Ade-e-e-e-us – disse Filipa.
João não respondeu. Pouco tempo depois, ouviam-se suspiros femininos no ar…
– Meninas, tenho saudades de dançar – disse Maria.
– Tenho saudades de conviver sem máscara – disse Filipa.
– Vou comprar um pelicano – disse Catarina.
Pediram a conta. Filipa pagou o seu café e o de João. Maria encarregou-se de pagar o restante. Por fim, saíram e já no jardim acenaram, em simultâneo, ao Senhor José, que, com um sorriso coberto por um trapo, lhes devolveu a cortesia enquanto fechava O Morcego.