1. Esta manhã na praia insultaram-me. Estou habituado a ouvir impropérios na rua, não perco tempo com eles. Mas a miúda ouviu e perguntou o significado daquelas palavras.
2. Estava contigo quando pela primeira vez me perdi. Estava contigo embora não fosse bem estar contigo, tu estavas ao meu lado, andavas como eu, sentia a tua presença e não eras bem tu. Coisa estranha eras, como tudo o que começou a passar-se à volta.
3. Entrei no restaurante e o homem com maus modos gritou “a entrada não é por aqui”, a apontar uma estrepitosa fila com umas 50 pessoas que aguardavam a vez de serem colocadas. Eu entrara distraidamente por uma saída e ia a sentar-me numa das muitas mesas vazias, já postas, recuperadas do turno anterior de comensais “all inclusive”, quando o homem gritou. Tinha preso à lapela um nome qualquer e, por baixo, em letras garrafais, “CHEFE DE SALA”. Estremeci ao ler a palavra chefe.
4. Os malfadados incêndios. No café da aldeia, situada num dos poucos vales que até hoje não ardeu, alguns autóctones discutem com denodo a forma de os evitar. Diz um: “Limpeza da mata, amigos, é a solução”, e sorri rematando em dose dupla “o malvado aqui não entra”, intercalando com um golo da loura, que o tempo está de ananases e o café do chico não há maneira de meter ar arrecondicionado. “Vocês podem limpar as matas à vontade, isto vai arder tudo na mesma, se não for neste ano, é no próximo”, o miúdo anda armado em ecologista, felizmente o pai riposta, homem batido, “negociatas, são negociatas, o que vale é que o nosso vale não tem eucaliptos”, e logo o miúdo, descarado, “ó pai, isso não interessa nada, o aquecimento global quer lá saber se são eucaliptos se são pinheiros ou oliveiras”, “cala-te puto, não sabes do que falas”, “espera que passe os 40º e sem humidade e verás, nem são precisos fósforos”…
5. “Você não viu?…”, um dedo apontava a fila, outro estava espetado no meu colarinho. Fiz que não com veemência, pareceu-me a melhor técnica. Então ele susteve-se, baixou os dedos e colou os olhos ao meu rosto. Tentei encará-lo mas nem tempo tive, os seus lábios abriram-se num sorriso e riu às cachinadas. “Doutor! Doutor XPTO”, gritou, pedaços de micro-cuspo na minha direcção. Abanei a cabeça atarantado, não havia dúvida que se referia a mim. Mas quem era ele?
6. O serão passou-se em casa de amigos de um casal amigo, ele médico ela alternativa. Tu resmungaste “serão também alternativos?”, e eu ri-me, não gostas muito da minha amiga, dos piercings e tatuagens, “o braço dela parece uma floresta em autogestão”, eu finjo-me zangada a sorrir para dentro. Pelo meu lado gozo com os bigodes retorcidos do médico, ao que tu, culto que és, declamas “Em sangue Português, juram, descridos,/De banhar os bigodes retorcidos”; não sabes como me irrita essa tua mania de citar Camões.
7. “Pai, porque disse aquele senhor que és corrupto?”. Fiz um gesto a desconsiderar mas ainda havia demasiadas cabeças viradas para o nosso toldo, reconsiderei, que responder?, e o tipo continuou “estes gajos deviam era estar todos presos” e eu, baixinho, não fosse ele ouvir “não é com o pai, filha”. Apesar dos seus 11 anos, senti-a descrente.
8. “Doutor, sou eu, doutor, eu”, sorri, sorrio sempre em caso de embaraço, sim, fiz de conta, faço sempre, abraço, grande abraço, aproveitei para deitar olhos à placa com o nome dele, e lá me lembrei. “Esteves, és tu”, meu escriturário vai para lá de 20 anos, “sou doutor, sou eu”, e chamou o pessoal, elogiando-me em alta grita. A fila à porta aumentava de tamanho, o pessoal todo ali e ele encantado, “leva o doutor à mesa 1” e lá fui para a mesa 1, mesmo à frente da fila. Sorri para os primeiros, um deles rosnou.
9. Saímos cedo do serão em casa dos amigos dos nossos amigos. A conversa fora estranha. À saída, o médico e a alternativa mantiveram-se um degrau acima a dar-nos instruções. Para quê? Deambulámos pelas ruas vazias da expo, casas vulgares transformadas em mansões com piscina e acabamentos de luxo. Depois, sem porquê, voltámos à festa, que se transformara num evento animado. Dançámos, invadidos por uma sensação estranha, a sentirmo-nos mal, alguma coisa contra nós, uma agressividade oculta. Éramos prisioneiros, apercebi-me; olhei para ti e tu já não eras bem tu, devias ter deixado de o ser enquanto caminhávamos pelas ruas desertas da cidade nova. Sentia-me uma caricatura de mim mesma observada por monstros. Olhares.
10. “A questão”, intervém o edil, a defender os seus, “é a qualidade dos serviços”, o defensor da limpeza da mata gargalha, “ó presidente deixe-se disso, a junta não tem dinheiro para mandar cantar um cego”. O eleito empertiga-se, “centenas de ignições morrem de morte macaca à nascença, Florindo”; este desabrochou “foi a malta daqui, a limpeza da mata”. Chega o GNR, de folga na terra. Veio de combater o fogo lá para o sul, traz novidades. “Este ano salvamos vidas, quem não sair das casas é ajudado a sair”. O florido agita-se, o miúdo ecologista “o que quer isso dizer?”, “este ano não morre ninguém, custe o que custar”, o pai indigna-se “deixam arder? estão a soldo dos madeireiros?”, “claro que não, mas saem para não morrer nem que tenha de os matar”, o ambiente turva-se, “prevenção, o plano da protecção civil”, afoita-se o presidente da junta, “cale-se com isso ó Presidente, olhe que para o ano há eleições”, zizania, zangam-se os compadres, há sopapos no ar…
11. Tenho de explicar à minha filha que é por eu ser uma figura pública. Que mais poderei dizer? Que são todos uns invejosos? É a última palavra dos Lusíadas, só me irrita que tantos agora o repitam, quando só eu a citava tinha panache, agora, “está bem, lá vens tu com o Camões”. Que tudo o que fiz foi para bem dela e dos irmãos? Nada para mim? Bem, espero que não pergunte o que fiz, é difícil de explicar, não fiz nada que outros não fizessem, ademais são tudo siglas, acrónimos complicados, contratos que nem eu entendo.
12. Medo. Tenho de sair depressa. Os rostos exacerbados, mãos prendem-me. Grito. Agarram-me com força, re-grito, veias finas colorem-lhes fácies obscenas, já não grito, guincho, fico afónica e de repente saio para a rua, eufórica desço as escadas, quero gritar de alegria, nem um som. Tu estás ao meu lado, calado.
13. A rua normal, o ar cálido, corre uma brisa agradável. Dobro a esquina e muda tudo: os carros como nos desenhos animados, coloridos e compridos, cadillacs para cima e para baixo, puxam-me pela mão, és tu?, não te reconheço mas és tu, levam-me, levas-me, por uma porta, subo umas escadas, estou sozinha. Um homem que diz ser enfermeiro faz-me entrar de novo na festa, cheia, gente estranha, um pequeno grupo de mulheres olha-me como a um bicho, uma morena alta simpatiza comigo, falamos, depois transformam-se em mulheres normais, cinco ou seis, umas giras uma gorda uma muito magra, a morena. Fujamos, sugiro, estamos prisioneiras, concordam, corto um dedo num rebordo da parede, o sangue espirra e cai sobre as figuras hostis, afastam-se, repilo-as, descemos as escadas, o sangue coagula, que rápido coagula o sangue quando há medo, estamos na rua, juntas.
14. A fila ondula. O Esteves não me larga, fala do passado, “era bom doutor, não foi?”. Descura os clientes. Da cabeça à cauda, cujo final já se não vê no fundo do corredor, cresce a agitação. Peço o jantar ninguém ouve, os empregados desapareceram, ficou só o Esteves com a sua grande placa CHEFE DE SALA e eu, esfomeado. As pessoas zangadas.
15. Já sei, digo às minhas amigas quando, o sangue esgotado, curvas de cores rompem a noite e um sussurro de ódio, de hostis, se aproxima. “Não podemos mostrar medo”. Dirigimo-nos à saída, nem percebi termos voltado a entrar, vou à frente e recomendo cautela, “eles” não podem cheirar medo, chegamos sete à rua, precisamos de dois carros, ei-los, ocupamo-los, ninguém teve medo, mas um deles não pega, chegam patrulhas com mulheres baixas e más, as do segundo carro passam-se, gritam, não gritem guinchem, grito, elas não ouvem e estamos de novo na festa, outra vez hóspedes na casa dos loucos.
16. Tenho de assumir. Mostrar coragem perante a minha filha. Levanto-me da espreguiçadeira e dirijo-me ao homem que me insultou. “Estava a falar comigo?”. Ele levanta os olhos do iPad, olha-me e não responde. Insisto.
17. Ao meu lado só ficou a morena. E de repente vejo-te, não me tinha apercebido ter deixado de te ver. Fingimos que está tudo bem. Temos de nos descobrir. Saber quem é quem. Chegas ao pé de mim e falas-me com uma voz que não reconheço. És tu e não és. Uma armadilha. Perguntas quem sou, quem és, estava a ver que nunca mais perguntavas. És o pai, respondo. E tu transformaste-te em ti e fugimos os dois.
18. Fiquei sozinho com o Esteves. Não há comida, foram-se todos embora. Ele conta sem cessar episódios que não recordo do tempo em que não nos conhecemos.
19. O homem pergunta: “Você é corrupto?”. Na dúvida, nego. “Então não é consigo”. Fico sem saber o que dizer e pergunto-me se devia ter respondido de outra forma.
20. No café do Chico sem ar arrecondicionado, faz um calor de ananases, a discussão corre feia. Ninguém se entende. Lá fora, o vale que nunca ardeu parece uma fornalha.
21. Pergunto-te se recordas o convite para casa do médico, tu não te apercebeste de nada. Do alto das escadas, a mulher alternativa aconselha: nunca mais aceitem convites de desconhecidos.