A dissolução da Assembleia da República é a derradeira e mais poderosa arma do Presidente da República no sistema político português. Na situação actual, apesar da evidente gravidade do momento em que vivemos, talvez dos mais delicados do ponto de vista institucional desde a consolidação da democracia, não antevejo que Marcelo Rebelo de Sousa faça uso daquilo que comummente designamos por bomba atómica. No entanto, a erosão evidente que o governo de António Costa tem vivido praticamente desde que tomou posse torna cada mais provável a acção do presidente da república à medida que o tempo passa. Acho improvável que Marcelo Rebelo de Sousa termine o mandato sem dissolver o parlamento. Assim, penso que é importante darmos um passo atrás e relembrarmos algumas lições que a ciência política tem sobre as condições que aumentam a probabilidade de dissolução por parte do Presidente da República.
Em 2016, juntamente com Pedro Magalhães, escrevi um artigo, publicado no European Journal of Political Research, no qual fazemos uma análise comparada sobre a sobrevivência dos governos em regimes semipresidencialistas em 12 países europeus ao longo de várias décadas. Incluímos, naturalmente, o caso português. É bom lembrar que os regimes semipresidencialistas colocam um dilema político que está, aliás, na génese de muitos conflitos entre presidentes e primeiros-ministros. Ao contrário dos regimes parlamentares puros, nos quais existe uma fusão entre o poder executivo e poder legislativo, nos regimes semipresidencialistas existem dois actores (presidentes e primeiros-ministros) com legitimidade política própria derivada directamente das urnas. Para além disso, muitas vezes, as suas coligações eleitorais são também bastante diferentes, o que se reflecte nas expectativas e preferências diferentes sobre o rumo político a seguir.
A análise empírica da sobrevivência dos governos em regimes semipresidencialistas mostra que é quatro vezes mais provável o presidente dissolver o parlamento quando o governo é minoritário e não goza de apoio no parlamento, diminuindo, assim, o custo político para o presidente. Pelo contrário, quando os governos são compostos por um único partido, especialmente em democracias mais maduras, a probabilidade de os presidentes utilizarem os seus poderes para convocar eleições antecipadas cai substancialmente, na medida em que, ao fazê-lo, isto seria entendido como uma ingerência política indevida.
No nosso artigo debruçamo-nos com bastante detalhe no papel da coabitação, isto é, situações em que o presidente e o primeiro-ministro provém de áreas ideológicas distintas, o que, em teoria, seria propício ao aumento do conflito político. O resultado é contraintuitivo. Em vez de aumentar o potencial de conflito e de diminuir a sobrevivência do governo, a evidência mostra que a coabitação leva a uma parlamentarização do semipresidencialismo, limitando a influência do presidente em quase todas as matérias. Em linha com trabalhos como o de Samuels e Shugart, a evidência do nosso trabalho mostra que, na prática, quando o presidente e o primeiro-ministro são do mesmo partido, o primeiro ganha um ascendente sobre este último, aumentando a sua influência através de mecanismos políticos informais.
A contribuição de Petra Schleiter e de Edward Morgan-Jones ajuda-nos ainda a perceber se o desempenho da economia tem um impacto na probabilidade de o presidente utilizar os seus poderes de dissolução. Em teoria, um governo com capacidade de obter bons resultados económicos e aumentar o bem-estar dos cidadãos deveria estar mais protegido de choques exógenos que pusessem em causa a sua sobrevivência. Na sua análise comparada, Schleiter e Morgan-Jones mostram que a economia é um factor irrelevante na utilização que os presidentes fazem dos seus poderes.
A leitura da literatura académica sobre presidentes e sobrevivência de governos levar-nos-ia a concluir que a probabilidade de o governo de António Costa ser derrubado por Marcelo Rebelo de Sousa é mínima. Para além disso, existe ainda uma variável conjuntural que ajuda António Costa. Na sua ponderação sobre uma eventual dissolução, Marcelo Rebelo de Sousa enfrenta dois cenários. Por um lado, o povo pode reconfirmar a continuidade do PS no governo, o que deixaria o presidente em muito maus lençóis politicamente. Por outro lado, o povo pode optar por fazer uma rotação de poder, entregando ao PSD e a Montenegro a tarefa de chefiar o país. No entanto, olhando para as sondagens actuais, o Chega teria necessariamente, de uma maneira ou de outra, de entrar na equação governativa. Marcelo ficaria para sempre conotado com a chegada ao poder, pela primeira vez na democracia portuguesa, da direita radical. Esse evento, que será traumático quando acontecer, especialmente num país com um passado político de um regime autoritário de direita, marcaria indelevelmente a presidência de Marcelo. Pessoalmente, não gostaria de estar na pele de Marcelo Rebelo de Sousa. Na solidão do poder, terá de tomar uma decisão dificílima, até porque a continuidade de António Costa e do pântano actual, que não será resolvido com uma remodelação, por maior que esta seja, imporá custos e degradação à vida política portuguesa.