A semana passada escrevi sobre o racismo na sociedade americana. Preferi não generalizar – ainda que este esteja a crescer um pouco por todo o mundo – porque me parece um caso muito específico, enraizado em circunstâncias fundacionais, o que o tornam um fenómeno particularmente resiliente e, por isso, difícil de transformar, sobretudo quando a conjuntura política lhe é favorável. Nada disto pode ser ignorado. O racismo é um mal em si, e tem de ser enfrentado como todos os males: não é suficiente bani-lo das instituições e constituições sem se mudarem as mentalidades. Além das causas inumeradas a semana passada, vimo-lo passar a ser vivido como uma política identitária, na sua mais devastadora faceta.

E se depois da morte de George Floyd vimos a explosão da revolta legítima de uma das identidades – a afro-americana – nos dias que se seguiram, já não só na América, mas um pouco por todo o mundo (incluindo Portugal), vimos a transformação dessa revolta num outro tipo de ódio que, por muito que tenha raízes no sofrimento humano, também não é justificável. Um ódio ao passado histórico das nações.

Se a origens do primeiro é relativamente fácil de determinar, a do segundo já tem um início mais obscuro. Numa sociedade saudável, especialmente em ambientes multiculturais, grupos com diferentes identidades acreditam que podem viver em harmonia, independentemente de costumes, diferenças religiosas, étnicas e até linguísticas. A política identitária explora essas diferenças convencendo quem se sente mais acossado, em cada momento histórico, que as diversas formas de vida são incompatíveis. É neste ponto que estão algumas democracias ocidentais – talvez a americana principalmente, mais polarizada e tribalizada do que a europeia, havendo nesta última mais fragmentação (com alguns partidos extremistas a ganharem fôlego) do que tribalização.

A defesa das minorias é uma causa meritória. Mas quando a esquerda moderada ocidental perdeu a sua maior bandeira – a partir de certo ponto, a “classe trabalhadora” já se assemelhava demasiado à “classe média” e o estado social (na Europa) já estava suficientemente generalizado para que precisassem de representação especial, nasceu uma nova causa: aquilo a que normalmente chamamos “politicamente correto”, que mais não é que uma defesa intransigente de causas, muitas delas perfeitamente louváveis – a defesa do combate às alterações climáticas, a luta a favor dos direitos das minorias, por exemplo – mas com um radicalismo que ultrapassa as barreiras do aceitável.

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As versões mais benignas são altamente moralistas e censuram quem não pensa da mesma maneira. Não basta ser contra o racismo; é preciso ser contra o racismo da forma que uma espécie de pensamento dominante dita. Nada menos que isto é aceite. As versões menos benignas tornaram-se muito evidentes nos últimos dias: não basta ser antirracista, é preciso reinterpretar a história para que todos os erros dos nossos antepassados – em contextos que não eram percecionados pela maioria como erros – sejam subterrados como se nunca tivessem acontecido ou suportados nos nossos ombros como se a responsabilidade fosse nossa. Vandalizam-se estátuas, retiram-se outras (para evitar violência), mudam-se grelhas televisivas para não ofender a opinião pública.

O politicamente correto, especialmente na sua versão mais extremada, tem quatro consequências imediatas: a primeira é levar-nos pelo caminho do a-historicismo. Se há razão pela qual a história é útil é para aprender e evitar cometer erros do passado. Uma história sem contextos nem compreensão aturada torna os nossos países muito mais vulneráveis. Sem memória corremos riscos de cometer os mesmos erros vezes sem conta.

O segundo é que, além de nos dividir nas nossas diferentes identidades, divide-nos também entre seres humanos decentes e não decentes. Por esta ordem de ideias, o debate político é completamente inútil. Ou concordamos, ou estamos errados.

O terceiro, e talvez mais grave, é que leva à censura e à autocensura. Nas nossas sociedades já tão hostis a opiniões diferentes em causas fraturantes e cada vez mais noutros assuntos, que há anos atrás constituíam matéria de debate civilizado, para quê metermo-nos em assuntos “que não são nossos”? É o tipo de comportamentos que afastam os cidadãos comuns da política.

Finalmente, da autocensura ao ressentimento vai um passo pequeno. E do ressentimento à instabilidade social também não é preciso muito. Basta um incentivo. Não têm faltado problemas. E não tem faltado quem se aproveite disso, do politicamente correto – que acabou por se tornar uma ideologia – à sua contrarrevolução – a que chamamos populismo (que também tem formas mais benignas que outras). É este o mundo em que queremos viver?

O populismo e o politicamente correto acabam por ser dois lados da mesma moeda. Os dois lados que submergem a liberdade de expressão, aquela moderada e racional de que precisamos todos. Os acontecimentos dos últimos dias mostram que a moderação política está moribunda. E que se não fizermos alguma coisa para evitar o seu desaparecimento pagaremos um preço muito alto por isso.