O envio – era já o terceiro – de sete raparigas e sete rapazes como tributo anual a Minos, rei de Creta, pela morte do seu filho, provocou uma sublevação entre os atenienses e, como forma de apaziguamento, o próprio Teseu, filho do rei de Atenas, ofereceu-se para integrar o grupo a ser enviado para o sacrifício. Na hora da partida, o pai, Egeu, entregou-lhe uma vela branca e outra negra para a nau: a primeira seria usada na viagem de ida, bem como, caso perecesse, na do regresso; caso vencesse o Minotauro e regressasse ileso, a nau retornaria a casa com a vela branca içada.
Derrotado o Minotauro e regressando à terra natal, Teseu, destroçado pela perda de Ariadne, esqueceu-se de, para assinalar um são regresso, trocar as velas e, avistando ao longe a vela negra e pressentindo a morte do filho, Egeu precipitou-se no mar, que desde então recebe o seu nome.
Mais do que mera antecipação do futuro, a esperança sempre foi para o pensamento grego uma estrutura fundamental da existência: apenas o homem é capaz da espera porque apenas ele, mortal e consciente, se esforça por ultrapassar a precariedade da contingência. E é porque a vida nos acontece sempre precariamente (do latim, prex – súplica, oração), seja sob a forma de projecto criador ou de confiança espiritual, que o cristianismo fez dela uma virtude teologal: a experiência da plenitude não pode limitar-se a uma beatitude etérea eternamente diferida, mas tem de acolher aquele moio de pequeninas esperanças quotidianas que, cosendo o tecido da nossa vida pessoal e comunitária, oferecem abrigo a esta natural confiança na permanência e continuidade do ser. Destrui-lo implica erodir a nossa humanidade.
Se um rasgão nesse tecido é sempre uma experiência de iníqua fragilidade – por não podermos escapar ao infortúnio nem ao acaso – duplamente iníquo é ter de suportar a jorra deletéria de indiferença e cavalidade que escorre brutalmente das negras fossas disfarçada de bocas (as precisas bocas de onde esperávamos amparo e sentido) com que alguns devoram a nossa capacidade de confiar num possível bem futuro, mesmo que incerto.
Chamado a pronunciar-se, na passada terça, sobre diplomas relacionados com o SNS, Marcelo confessou “inúmeras dúvidas e reticências”, nomeadamente pela mistura de matérias que “mereceriam tratamento autónomo”, aproveitando o ensejo para sublinhar ainda a oposição “mais ou menos intensa” (o coito entre eufemismo e perífrase sempre excitou os tíbios) por parte de muitos profissionais de Saúde. Diante de uma apreciação tão negativa, que deliberação deduziriam as mais vulgares meninges, mesmo aquelas onde se acoita uma inteligência meridiana? Veto, certo?
Contudo, prestando vassalagem apenas à imagem que de si mesmo compôs aquela fronte de soberano, que resolução delibera Marcelo? Promulgar, evidentemente, tendo em conta a “urgência” – do desastre, supomos – e por ter antecipado um “eventual recurso, por parte do Governo, à Assembleia da República para superar o veto presidencial”. Assumindo (até que enfim!) que Costa o reduziu a mero sinete, elegante e com pergaminhos, para timbrar com lacre e selo o desconchavo, o amadorismo, a aselhice e a soberba do braço executivo, Marcelo abdica também, entre pilhérias e mais uma selfie, do papel que a orgânica democrática lhe reserva e de que se fazem valer todos os regimes que se fundam na dignidade e na compaixão: o de guardião da grande esperança que todas as demais sustenta.
Nesse mesmo dia, o Governo anunciou a criação de um grupo de trabalho para rever e alterar a Lei Tutelar Educativa, no seguimento de um grupo anterior criado na sequência da morte de uma menina em Setúbal, em Junho de 22 e cujas conclusões, reivindicadas como “urgentes e prementes”, ainda hoje, ano e meio depois, não são conhecidas. Tal como não são as de um outro, criado no Verão de 2020, na sequência da morte de uma menina em Peniche. Nem as de nenhum outro que o asco – por revolta ou pudor – nos coíba de indagar, destapando aquela cloaca onde a matéria putrefacta de grupos e comissões leveda boys and girls que, após a eclosão do ovo, zunem, como gordas varejeiras, por assessorias e pela água choca em que a administração pública se deixou açudar.
Jamais conseguiremos cortar cerce nem a tempo a perversão, a maldade inominável, infelizmente. Mas não poderemos nós exigir que o ethos público respire salubremente aquela convicção tácita (que costumava criar comunidades, lembram-se?) de, contra todos os revezes da fortuna, nos prometermos vigília atenta em todos os crepúsculos e de a ninguém, particularmente aos mais desamparados, poder faltar, quando tudo o resto falhar, pelo menos a companhia?
Tudo menos esta escorrência salobra de grupos de trabalho, cevados a leite de burra e pão de ló, arrimos para aquela jactância de poltrão com que o governo, ocultando a sua repulsa por decisões e paixão pela miséria, traveste a sua inabilidade e incompetência.
Poupem-nos à sucessão onanista de anúncios de todos estes grupos e ao inevitável entremez em que António Costa, abrindo e fechando a boca, nos aparece em horário nobre, pesaroso e grave, tentando convencer-nos de que os sons de que se vai aliviando – um punhado indistinto de nasais, fricativas e sibilantes – querem realmente dizer alguma coisa e não passam daqueles indolentes limacídeos a que nos habituou, ensopados em visgo na ânsia de que alguma coisa da realidade se lhes pegue. Sobreviverá alguma coisa à trituradora profissional – Paixão Martins oblige – deste fingimento?
Quero acreditar que é talvez o mais necessário dever da esperança, sob a acção vígil da vontade e da responsabilidade, manter intacta a luminosa ousadia de, em plena sombra que este invernoso hálito socialista a ranço e cebola vai abatendo sobre nós, romper clareiras de humanidade, compaixão e justiça, mesmo quando só velas negras parecem arrimar às nossas costas. E velar por todos aqueles cuja barca nunca ninguém esperou.