“Social media is biased, not to the Left or the Right, but downward (…) An unfortunate combination of biology and math favors degradation of the human world (…) We’ll return to the higher potency of negative emotions in behavior modification many times as we explore the personal, political, economic, social, and cultural effects of social media”, Jaron Lanier.

Se numa das últimas crónicas refletimos sobre os efeitos nocivos dos telemóveis para as crianças, chegou a hora de olharmos para o impacto mais profundo que o uso excessivo de dispositivos digitais está a ter nos adultos. Em particular, na forma como as democracias estão a ser moldadas por um novo conjunto de regras centradas na exploração do já famoso neurotransmissor associado ao prazer imediato e à gratificação instantânea: a “dopamina”.

A dopamina é desde há muito a força motriz das interações humanas no mundo digital. À medida que o uso de redes sociais se intensifica, cresce também a dependência desta substância para regular não só as nossas relações interpessoais, mas também um debate político altamente capturado pelos palcos digitais. O impacto na democracia desta deslocação do debate político para as redes sociais ou para órgãos de media digitais tem sido devastador. É que a necessidade constante de dopamina passou a dominar as dinâmicas do confronto político.

Este fenómeno, que por simplicidade decidi apelidar de “dopaminocracia”, está a distorcer a forma como se debate, discute ideias – ou até como (não) se negoceia na política. Na dopaminocracia, em vez de se valorizar o diálogo ou reconciliar diferenças, recompensa-se a polarização, a reatividade e o conflito. Vive-se na “ditadura das pequenas diferenças” onde qualquer epifenómeno é ampliado e divergências mínimas dão lugar a batalhas épicas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se Platão fosse hoje vivo, provavelmente reescreveria A República para considerar a dopaminocracia uma degenerescência da democracia. Portugal, aliás, é hoje um expoente visível do “ambiente dopaminocrático”, em que as dinâmicas políticas estão bloqueadas por dificuldade em obter consensos que no passado foram sempre alcançados com relativa facilidade. O impasse em torno da aprovação do Orçamento de Estado é um exemplo claro desta nova realidade. O governo tentou negociar com o principal partido da oposição, mas “pequenas diferenças” – que em tempos seriam resolvidas com diálogo – parece terem-se tornado intransponíveis. O sentido de compromisso, que faz parte fundamental do processo democrático, é visto na dopaminocracia como uma fraqueza. Num mundo viciado em telemóveis e redes sociais, a inflexibilidade é recompensada com “likes” e partilhas, enquanto o compromisso é tratado como traição.

Este ciclo de gratificação instantânea é particularmente evidente nas redes sociais. Um pouco por todo o mundo, a extrema-direita capturou a imagética do “pulsar da rua” e da sua mediatização e amplificação que antes pertencia às esquerdas trotskistas inspiradas em Negri, explorando estratégias semelhantes de forma habilidosa nas redes sociais. Veja-se o caso do Chega e do seu líder, André Ventura. Diariamente, o discurso endurece e radicaliza-se. O mundo visto pelo olho das redes e publicações do Chega apresenta-se pré-apocalítico, com violência nas ruas levada a cabo por meliantes imigrantes ou minorias étnicas numa sociedade em decadência moral. Cada dia que passa o discurso de Ventura está mais próximo do Armageddon (isso, ou de uma apoplexia do líder do Chega). Porquê? Porque, na dopaminocracia, Ventura precisa de doses cada vez maiores de dopamina para manter o interesse do seu eleitorado. Cada post nas redes sociais é um espetáculo em si, com expressões como “Ventura ARRASA”, “Ventura DENUNCIA”, a dominar as timelines. A mensagem por si só já não é suficiente; ela precisa ser embalada num conflito contínuo, numa luta épica contra todos os que se atrevem a discordar. Desconfio que à noitinha, no escurinho do seu quarto, André Ventura sonha ser um Mel Gibson num registo Braveheart.

A verdade, num mundo dominado por redes sociais, tão pouco tem a semântica que lhe conhecíamos. Ela passou a ser algo fechado na subjetividade, onde cada pessoa constrói a “sua” própria verdade, mesmo que esta tenha pouca (ou nenhuma) aderência com a realidade dos factos em si. O problema, e como muito bem analisou Shoshana Zuboff na sua obra O capitalismo de vigilância, é que a verdade não pode competir com a gratificação instantânea. O que está em jogo, por isso, é a própria natureza da liberdade e da democracia.

Recentemente, Ventura deu mais um passo rumo à dopaminocracia. Sem sentir necessidade de justificar as suas afirmações, informou-nos, em tom grave, que o primeiro-ministro, em segredo, lhe teria prometido uma coligação de governo em 2025 em troca de apoio para aprovar o Orçamento de Estado. O primeiro-ministro, que nega qualquer acordo com o Chega, refutou veementemente a alegação, mas Ventura respondeu acusando-o de ser “mentiroso”. Esta estratégia de vitimização é um exemplo claro de como a dopaminocracia funciona: ao criar um conflito de grande magnitude, Ventura não só procura descredibilizar o Governo, como tenta também alimentar a necessidade de dopamina dos seus apoiantes, reforçando a narrativa do “nós contra eles”.

É que na dopaminocracia este tipo de confronto não é apenas incentivado; é celebrado. E o problema é que este palco digital, que muitos consideravam ser o local perfeito para o debate público, tem-se revelado ser uma prisão para a democracia. O modelo de interação próprio da dopaminocracia é feito de construções superficiais, mimetismo e polarização. Os cidadãos são empurrados para pequenos mundos onde as suas certezas e ilusões são constantemente reforçadas por algoritmos que conhecem as suas preferências melhor do que eles próprios. Neste espaço de egos inflados, qualquer tentativa de moderação ou compromisso está condenado à irrelevância.

Como resultado, as democracias digitais tornaram-se cacofónicas e superficiais. O debate político, que deveria ser plural e de eliminação das tensões e diferenças, e de atenuação do conflito – é essa a razão de ser da democracia – tornou-se um campo de batalha de egos e de reações impulsivas. Nas redes sociais, não há tempo para a reflexão ou para a construção de ideias. O imediato prevalece sobre o profundo, e a gratificação rápida sobre a cooperação. Esta dinâmica não apenas alimenta a polarização, mas também impede que se formem os consensos necessários para governar eficazmente. A dopaminocracia reduz a viabilidade das maiorias relativas, empurrando os eleitores para as maiorias absolutas cada vez mais difíceis de obter face à polarização partidária.

A dopaminocracia está a corroer os alicerces das democracias modernas. Com outras consequências que analisarei em futuras crónicas.