Confundimos vezes demais a doença mental com violência e os doentes com pessoas perigosas, gente irrecuperável. Falar da loucura assusta por muitas razões, mas também porque nunca saberemos a fronteira entre as nossas fragilidades e as ‘deles’. Dos outros, a quem chamamos loucos. Ou malucos de manicómio. O tema é inquietante e a terminologia apavorante. Delírios paranóides, sintomas psicóticos ou sinais de esquizofrenia são claramente indicativos de doença mental, mas são também um vocabulário que nos atira para outra dimensão, para uma realidade que nos afasta e na qual erguemos muros quase intransponíveis. Põe-nos a milhas em termos de relações humanas. E, no entanto, não estamos assim tão distantes uns dos outros. Há mais semelhanças entre os que se consideram normais e os que consideramos loucos, do que pensamos. Cada dia há novos doentes psicóticos internados nos hospitais. E cada vez mais jovens. Bastam alguns excessos ou estar no lugar errado, à hora errada. O haxixe, por exemplo, cujo consumo e efeitos muitos miúdos acham que controlam, pode criar dependências e degenerar em surtos psicóticos. Mas há outros motivos que nos fazem adoecer mentalmente.

Não precisamos de ir ao Telhal, ao Júlio de Matos ou à Casa de Saúde da Idanha, nem a prisões ou enfermarias de doentes mentais para nos darmos conta de que há lá gente como nós. Pessoas que foram em tudo iguaizinhas até ao dia em que alguma coisa se agravou na sua vida emocional ou psicológica e toda a sua existência descarrilou. Vou e volto regularmente a estas instituições e saio sempre de lá convencida de que qualquer um de nós podia ser um deles. Claro que sei que a maioria dos internados são doentes mentais profundos, muitos dos quais nunca tiveram uma vida dita normal, e também sei que felizmente muitos de nós nunca nos transformaremos em doentes mentais, mas aquilo que me faz escrever sobre as fronteiras entre a loucura e a normalidade (sendo leiga na matéria e apenas visitadora voluntária em algumas destas Casas de Saúde) é precisamente esta certeza de que temos mais semelhanças do que diferenças. Senão vejamos.

Nos dias mais difíceis da nossa vida percebemos muito bem a angústia própria e dos outros, a inclinação humana para a depressão, o medo da morte, o terror da perda e da rejeição, a tristeza profunda, os pavores da solidão e por aí adiante. Todos acolhemos com horror um diagnóstico de Alzheimer de alguém próximo porque todos sabemos que amanhã poderemos ser nós a perdermo-nos de nós mesmos, dos outros e de todos no mundo. A loucura aterroriza e, para agravar, ninguém entende muito bem a dor psicológica. O problema é que o sofrimento psicológico dói e muito. A solidão transtorna-nos a tal ponto que preferimos despejar nas redes sociais as nossas perdas, mágoas, traições, tristezas e depressões, do que sofrer tudo isso sozinhos. E se assim é, e se todos percebemos que mesmo não correndo o risco de virmos a ser esquizofrénicos, todos estamos mais perto das fronteiras desse ‘adoecer mental’ do que gostaríamos, importa perceber as fronteiras comuns. E fazer o que estiver ao nosso alcance para desfazer estigmas e derrubar barreiras, mas também para apagar (eliminar!) a hostilidade com que olhamos para quem nos parece louco. A estranheza nos outros pode ser inquietante; os tiques da loucura podem ser assustadores, o olhar fixo-parado de alguns doentes mentais pode ser altamente perturbador, mas nada justifica um olhar ou uma atitude que desumaniza. Mesmo quando não conseguimos encontrar traços comuns nem somos capazes de nos identificar com pessoas com distúrbios mentais, temos que nos lembrar que a sua dor psicológica, bem como a dor das sua famílias ou cuidadores dói. E muito.

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