De há algumas semanas para cá temos sido todos aconselhados, de modo a conter a pandemia de coronavírus, a adotar medidas de distanciamento social, as quais vieram depois a ser legalmente impostas. Não pretendo aqui discutir o acerto destas medidas, que espero ajudem a conter a propagação do vírus, mas quero abertamente contestar a expressão utilizada – «distanciamento social» – e, sobretudo, esclarecer o seu conceito.

Pode parecer coisa pouco importante, e até descabida, que, em tempo de emergência nacional – ou melhor, global –, alguém se preocupe com a expressão e o conceito utlizados para designar as medidas propostas para combater esta doença. Mas o facto é que, salvo honrosas exceções, eles se espalharam por todo o mundo e, entre as hipóteses extremas que certamente irão surgir e que procurarão explicar este acontecimento ou como o início de um mundo novo, reerguido e purificado, ou como o fim de um mundo velho, decadente e corrompido (hipóteses essas que circulam já na internet), teremos de saber pensar com moderação tudo o que se está passar e para isso necessitaremos de instrumentos – neste caso, conceitos – rigorosos e precisos.

É preciso dizer, antes do mais, que esta é uma crise de saúde pública global e que, como tal – isto é, enquanto acontece num mundo globalizado –, é algo que se dá pela primeira vez na história. É claro que, ao longo dos tempos, houve muitas outras epidemias, todas elas com consequências terríveis, como é o caso da peste, da lepra, da cólera, da tuberculose, da varíola, da gripe espanhola, do tifo, da febre-amarela, da febre-tifoide, do sarampo, da malária, ou da sida, entre outras. Nenhuma delas, porém, ameaçou imediata e simultaneamente a espécie humana, porquanto isso é uma consequência direta da organização social do atual mundo global.

A globalização, na verdade, é o conjunto dos processos de interconexão social resultantes de uma capacidade de comunicar de tal modo acelerada e disseminada, que tudo aquilo que se faz e acontece num qualquer lugar, seja em que área ou domínio for, pode influenciar instantaneamente tudo aquilo que se faz e acontece em todos os outros domínios e lugares do mundo. No mundo global, portanto, todos somos imediata e simultaneamente ameaçados pela propagação física deste vírus, tal como todos estamos imediata e simultaneamente comprometidos pelas respostas que socialmente lhe damos.

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Mais do que uma mera questão física, portanto, a globalização impõe-se como uma estrutura propriamente moral, a qual, no futuro, será preciso reconhecer e aprofundar. Na verdade, a recuperação racional da antiga ideia bíblica de uma solidariedade adâmica (segundo a qual pela desobediência de um só homem todos se tornam pecadores, tal como pela obediência de um só todos serão justificados… cf. Rm. 5, 15-21), devidamente transposta para um mundo multirreligioso e multicultural, implica uma redefinição política da organização das nossas sociedades, por meio da qual terá de algum modo de assumir-se a existência organizada de uma sociedade política global (um reforço da autoridade efetiva da Organização Mundial de Saúde em termos de saúde internacional, por exemplo, parecerá a todos, neste momento, uma necessidade evidente).

Nada disto poderá fazer-se, porém, se não formos capazes de instituir e de constituir moralmente o mundo que física e previamente nos é dado. É preciso estabelecer muito claramente, portanto, a diferença entre o mundo físico e o moral, sem o que será difícil perceber não só aquilo que realmente se está a passar, mas sobretudo aquilo que a seguir deve ser feito, nomeadamente no que diz respeito às escolhas dos modos de vida que, enquanto comunidade, queremos ter ou não ter.

Enquanto seres físicos, com efeito, todos nós, tal como o vírus, obedecemos necessariamente às regras que determinam o comportamento dos corpos materiais; enquanto seres morais, porém, obedecemos também livremente às regras que nos autoimpomos com o propósito de vivermos em sociedade. O mundo moral, portanto, é aquele em que os seres físicos dotados de vontade e inteligência se põem a questão do «para quê», com que abrem as portas do mundo espiritual, no qual surgem os princípios que dão sentido à caminhada.

Voltamos, assim, à questão das medidas de «distanciamento social». Ora, o vírus transmite-se física e não moralmente, pelo que aquilo que verdadeiramente se nos pede é também um distanciamento físico – e não social. É claro que o relacionamento social, ou moral, está intimamente ligado ao relacionamento material, ou físico, resultando tantas vezes em beijos, abraços e festas; amuos, ciúmes e gritos; choros, suspiros e risos… Mas se o contacto físico é uma condição prévia necessária a qualquer relação moral, de nenhum modo a determina necessariamente, porquanto o princípio formal desta é a liberdade. É a aproximação moral, portanto, que determina e move para o contacto físico, assumindo-o e transformando-o – e não o contrário.

O distanciamento físico, assim, limita o relacionamento moral, mas não o impede, podendo mesmo desencadear, tal como agora, um movimento de aproximação social – o que de algum modo nos permite tentar responder à grande questão que se põe ao nosso atual mundo global, que é a de saber como é que as nossas relações morais podem verdadeiramente – e não apenas virtualmente – estender-se a todos os outros, numa espécie de concretização material do ideal kantiano de uma vontade legisladora universal enquanto princípio supremo da moralidade (cf. Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, II).

É neste sentido que, do meu ponto de vista, o maior sinal de esperança que vemos surgir no meio de toda esta crise, ou emergência, global consiste justamente no facto de que, para além das aparências, que nos mostram o fechamento de lojas, escolas, serviços, cidades, aeroportos e países, está também a operar-se, na esfera moral, uma abertura das nossas próprias fronteiras, alicerçada na consciência pessoal de uma natureza e de um destino comuns.

Fechados em casa, com efeito, não só nos aproximamos daqueles que ali estão unidos connosco (é muito interessante notar, neste sentido, que «fechados» e «unidos» têm o mesmo significado), como vamos à procura dos outros que nos são próximos. Cuidamos e protegemos as nossas famílias e estendemos esse cuidado e essa proteção, na medida do que nos é possível (medida essa que é sempre objetivamente difícil de definir), aos nossos vizinhos, cidadãos e compatriotas, com quem sentimos a necessidade de partilhar a nossa condição e a nossa presença (as pessoas, com efeito, têm ido às janelas e varandas de suas casas para estar, falar, cantar e rezar com outras, que até há bem pouco tempo lhes eram, de um modo geral, indiferentes). E além disso agradecemos, sempre em conjunto, às classes profissionais que nos têm ajudado (médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de saúde, bombeiros, polícias…), tendo-se mesmo subitamente desenvolvido em nós um estranho sentimento de respeito pelos, e de confiança nos, nossos representantes políticos.

Os profissionais de saúde, do mesmo modo, trabalham mais do que nunca de mãos dadas com os da proteção civil e estes com os das forças de segurança; e todos estão solidários com as autoridades públicas, que colaboram com os jornalistas para informar e esclarecer a população; e o povo obedece voluntariamente à lei, que é concertada entre os vários países. As empresas e os Estados coordenam-se também em vista de um mesmo fim, preparando a economia para agora e para depois, enquanto pedem aos cientistas que trabalhem em conjunto para descobrir um remédio para a doença… e os cientistas, indiferentes às questões das patentes, ou da propriedade, partilham e organizam a informação recolhida com cada uma das outras ciências, em particular, e com a sociedade, em geral. As ciências médicas, neste sentido, têm colaborado como nunca entre elas, pedindo e aceitando a colaboração e a ajuda de todas as restantes ciências, de tal modo que nos habituámos a ver, nos últimos dias, economistas e matemáticos, por exemplo, a produzir e a difundir, em conjunto com as autoridades da saúde, cenários que permitam prever a propagação desta doença.

Seria bom, assim, que, passada a necessidade do distanciamento físico e regressados à normal mediocridade das nossas democracias (no sentido que lhe dá Alexis de Tocqueville: Da democracia na América, II, 9), mantivéssemos e aprofundássemos um pouco a atual experiência de aproximação social, de tal modo que, daqui para a frente, aparecessem também os arquitetos, que, em conjunto com os engenheiros civis, os urbanistas, e outros, nos explicassem como deveriam ser as nossas casas, em vista da manifesta insuficiência das atuais, nas quais esta quarentena tem mostrado faltar espaço para a vida religiosa, económica, ou familiar… e os economistas, os informáticos, e os especialistas em recursos humanos, desenvolvendo decididamente a possibilidade do teletrabalho… e os biólogos, os ambientalistas, e os engenheiros químicos, propondo formas de transporte público eficientes e sustentáveis… e os engenheiros agrónomos, os botânicos, e os juristas, propondo novas formas de organização territorial e de propriedade… e já agora, porque não, os filósofos, que voltariam assim a viver nas cidades, nas quais deverão perguntar «o que é o homem?» e estabelecer, nesse sentido, as relações e os limites racionais do ser físico, moral e espiritual.