Muito se tem falado sobre a criação de uma estrutura de missão para promover e organizar «as comemorações do 50.º aniversário da Revolução de 25 de abril de 1974», nomeadamente criticando: o tom ou o tema das comemorações, a saber, a experiência de uma epopeia coletiva não traumática dada no contexto da chamada terceira vaga de democratização; a escolha do seu comissário executivo, Pedro Adão e Silva Cardoso Pereira; a duração das comemorações, que vai de 24 de março de 2022 a 12 de dezembro de 2026; a dimensão da comissão executiva, composta por um comissário executivo, um comissário executivo adjunto, três adjuntos, três técnicos especialistas, um secretário pessoal e um motorista, a que poderão ainda juntar-se quatro técnicos superiores, recrutados em regime de mobilidade; o dinheiro que tudo isto irá custar; etc.

Houve quem estabelecesse, nesse sentido, comparações com comemorações nacionais passadas, nomeadamente a celebração dos 500 anos dos Descobrimentos portugueses e os festejos por ocasião dos 30 ou dos 40 anos do 25 de abril de 1974. Conheço especialmente bem, de entre estas, as «comemorações dos 40 anos do 25 de abril de 1974», cuja responsabilidade foi atribuída pelo governo de então ao seu ministro adjunto e do desenvolvimento regional, Miguel Poiares Maduro, de quem na altura era chefe de gabinete.

Coube-me então gerir e organizar, por isso, um conjunto de iniciativas que, ao longo de todo esse ano, visaram celebrar aquela data, a saber: a criação de um portal onde, em conjunto com as comemorações oficiais dos 40 anos do 25 de abril de 1974, pudessem ser anunciadas todas as outras celebrações públicas e privadas que assim o desejassem; a transmissão, na TSF e na Antena 1, de um conjunto de histórias e testemunhos pessoais sobre o modo como aquele dia foi vivido pelas pessoas comuns; um concerto, em Grândola, comissariado por Rui Massena e transmitido pela RTP, no qual as canções do 25 de abril foram interpretadas por músicos nascidos já depois da revolução; uma exposição sobre o design da revolução, no Porto, comissariada por Guta Moura Guedes; uma reconstrução dos itinerários da revolução, comissariada por José Mateus, que revisitou publicamente os lugares e os percursos que fizeram a história da revolução; um debate sobre neurociências, novas tecnologias e novos modos de deliberação e participação política, em Lisboa, comissariada por Rui Costa; e uma grande conferência sobre as vagas da democratização, também em Lisboa, comissariada por José Tavares e Pedro Magalhães.

O orçamento total destas comemorações foi de 250 mil euros, integralmente destinados a custos operacionais, já que a coordenação e a gestão das iniciativas foram assumidas por aquele mesmo gabinete ministerial, tendo todos os comissários aceitado trabalhar pro bono. Foi duro, foi difícil, mas fizemo-lo todos com muito gosto e o resultado foi francamente positivo.

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Esta comparação, no entanto, não faz sentido, não só porque 50 anos são uma data muito mais redonda do que 40 – merecendo, por isso mesmo, umas comemorações diferentes e especiais –, mas também porque as circunstâncias, num e noutro caso, são radicalmente diferentes. Naquela altura, com efeito, estávamos no auge da contestação à intervenção da troika, o que tornava as comemorações especialmente difíceis: se fôssemos austeros e gastássemos pouco dinheiro, por exemplo, diriam que desvalorizávamos o 25 de abril e a liberdade; se fôssemos flexíveis com os gastos, pelo contrário, diriam que éramos insensíveis aos sofrimentos que estavam a ser impostos aos Portugueses. Hoje, na verdade, apesar da pandemia, ninguém questiona a importância das comemorações, cuja contestação não põe de nenhum modo em causa o governo e muito menos a sua relação com o regime.

Não me parece, além disso, que as críticas que têm sido feitas sejam especialmente relevantes ou acertadas, não indo por vezes além do ressentimento e da inveja populistas. Tirando o aspeto do tema de «uma epopeia não traumática» que parecem querer impor à revolução, a escolha de Pedro Adão e Silva e a constituição abstrata da sua equipa, na verdade, não merecem contestação objetiva. A duração e o custo das comemorações, por outro lado, só no fim poderão com rigor avaliar-se. Ficamos, assim, apenas com a questão dos salários e das mordomias. Ora, os primeiros são equiparados aos salários dos gabinetes ministeriais, que se destacam da média portuguesa não por serem desmesuradamente altos, mas porque os salários em Portugal são de um modo geral muito baixos, sendo isto, na verdade, aquilo que importa corrigir. As segundas, por último, não se referem a um mordomo, mas sim a um motorista, o qual, não sendo estritamente necessário, posso assegurar ser muito útil, sobretudo na medida em que as comemorações irão com certeza preparar-se, organizar-se e desenvolver-se em todo o país.

Dito isto, há uma outra comparação que me parece importantíssimo fazer. É estranho, aliás, não ter sido ainda feita, pois que nos vem imediatamente à cabeça quando juntamos os nomes de António Costa e de Pedro Adão e Silva. Trata-se, é claro, de António Costa Silva, nomeado por despacho conjunto de António Costa, Pedro Siza Vieira e Nelson de Souza para «projetar uma estratégia de âmbito nacional de recuperação económica, através de um plano estrutural que defina as políticas públicas para a próxima década, (…) [assegurando para tal] a coordenação dos trabalhos preparatórios de elaboração do Programa de Recuperação Económica e Social 2020-2030».

A missão, como facilmente se deduz pela leitura do despacho, era nada menos do que hercúlea, porquanto determina «a elaboração de um plano específico que verse transversalmente sobre a recuperação do tecido económico e social, de forma articulada com a resposta imediata da União Europeia a esta crise económica, financeira e social, bem como com o próximo quadro financeiro plurianual 2021-2027», contexto no qual deverão reavaliar-se e reorientar-se estrategicamente «o Plano Nacional de Energia e Clima 2021-2030, a Estratégia Nacional para o Hidrogénio, o Programa Nacional de Investimentos 2030 e o Plano de Ação para a Transição Digital».

Importa perguntar, portanto, que condições foram criadas para que António Costa Silva levasse por diante tal tarefa? Ora, o despacho conjunto do Primeiro-Ministro, do ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital e do ministro do Planeamento, assinado no dia 2 de junho de 2020 – isto é, 40 dias depois de tudo isto ter sido publicamente anunciado e de António Costa Silva ter começado a trabalhar –, diz apenas, no seu número 2, que «pela coordenação dos trabalhos referidos no n.º 1, o designado não aufere qualquer remuneração ou abono». Quanto à constituição de uma equipa, nem uma palavra, muito embora se saiba que António Costa Silva terá sido graciosamente acolhido no Ministério do Ambiente, onde terá contado com a ajuda informal de uma secretária.

Esta comparação, na verdade, é chocante e deveria francamente preocupar-nos, porque tal como todos certamente desejamos que Pedro Adão e Silva tenha boa sorte no seu trabalho, também todos seguramente percebemos que António Costa Silva nem por sorte poderia ter feito o seu.

Temos de retirar daqui, portanto, três conclusões, às quais poderá talvez juntar-se ainda uma quarta: a primeira é que o Governo não queria que António Costa Silva elaborasse um verdadeiro plano estratégico para a recuperação económica e social do país; a segunda é que, se isto assim era, é porque o Governo já teria um outro plano estratégico para Portugal (formal ou informal, para o caso não importa); a terceira é que o Governo não queria – nem quer – divulgar, comunicar e debater esse seu plano estratégico com os Portugueses.

Perguntar-me-ão, talvez, por que razão haveria o povo de consentir ou permitir tal coisa, sendo nesse sentido que aqui se propõe ainda uma quarta conclusão: o povo não se preocupa com qualquer tipo de estratégia para a recuperação económica e social do país justamente na medida em que está satisfeito e entretido com a estratégia que julga haver para a recuperação económica e social do país.

Pão e circo, expressão célebre que nos ficou de Juvenal (Sátiras, X), segundo a qual é a isto que se resume ou é com isto que se controla o poder do povo. Pão e circo, eis – infelizmente – o sentido das comemorações. Só assim, aliás, se compreende e se explica o tom ou o tema que parecem querer impor-lhes. Uma «epopeia não traumática da revolução», com efeito, significa a celebração poética dos heróis de uma revolução que não teve antes ditadura nem depois descolonização; significa comemorar, não a revolução de 25 de abril de 1974, com tudo aquilo que a antecedeu e se lhe seguiu, mas uma outra realidade, à qual deverá dar-se uma dimensão épica de algum modo redutível a mero entretenimento.

A única questão que, do meu ponto de vista, fica ainda por resolver é se o Governo tem uma estratégia que nos quer esconder com «pão e circo» ou se a estratégia do governo é tão-somente «pão e circo». Cada um decida por si mesmo o que pensar. É disso que depende, em última instância, o 25 de abril.