21 de Maio de 2003, escutas telefónicas do processo Casa Pia, tornadas públicas pela SIC. Ao longo daquele dia, as cúpulas do PS tentaram impedir a detenção do então deputado Paulo Pedroso. António Costa, então deputado e ex-ministro da Justiça, conversa ao telefone com Pedroso e diz-lhe: «Já fiz o contacto. Disse que ia falar imediatamente com o Procurador do processo, portanto, o Guerra. O receio que tem é que a coisa já tenha… já esteja na mão do juiz visto que é o juiz que tem de se dirigir à Assembleia. Pá, talvez o teu irmão seja altura de procurar o Guerra.»
«O Guerra» era o procurador João Guerra, considerado, como demonstra o teor da escuta, telefonável (isto é, alguém a quem se podia recorrer para inverter o sentido de um processo judicial) pelo actual primeiro-ministro António Costa.
João Guerra era irmão de Carlos Guerra, ex-presidente do Instituto de Conservação da Natureza que viabilizou o projecto Freeport. A 17 de Março de 2009, o Expresso publica uma peça que remete para uma escuta telefónica em que a inspectora titular da investigação afirmava «vão mas é chatear o Sócrates porque ele é que recebeu os 500 mil», sendo que já em 2005 O Independente noticiava que José Sócrates era um dos suspeitos do caso Freeport. Nesse mesmo ano de 2005, António Costa, número 2 de Sócrates no PS, tomava posse como ministro da Administração Interna do Governo liderado por aquele que veio a ser acusado de «mercadejar a sua função»..
Carlos e João Guerra eram também irmãos de José Guerra. Este foi nomeado para o Eurojust pelo Governo de José Sócrates – outro nomeado no organismo europeu era António Alves, ex-Inspector-Geral do Ambiente, entre Dezembro de 2000 e Agosto de 2002, por escolha e nomeação de José Sócrates, ex-ministro do Ambiente, que lhe renovou a estadia no Eurojust em 2007. José Guerra trabalhou também no Eurojust com José Lopes da Mota. Este foi acusado e condenado a uma pena de suspensão de 30 dias por ter pressionado procuradores do Ministério Público a arquivar o processo Freeport.
Lopes da Mota foi adjunto do gabinete de Francisca Van Dunem, ministra da Justiça dos Governos de António Costa.
A ex-ministra Van Dunem, apesar de titular a pasta da Justiça, não se inibiu de tomar posse como Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, sem que o Primeiro-ministro António Costa pestanejasse.
José Guerra acabou indicado para a Procuradoria Europeia pelo gabinete de Francisca Van Dunem, em detrimento da candidata que o júri europeu considerou que tinha mais experiência na investigação do crime económico, num processo semi-burlesco que chegou a envolver dados não-exactamente-verdadeiros no currículo do candidato seleccionado.
A preterida, a procuradora Ana Carla Almeida, encontrava-se a investigar um processo de umas golas anti-fumo inflamáveis, onde eram arguidos José Neves, ex-secretário de Estado da Protecção Civil no Governo de António Costa, e mesmo um ex-adjunto do secretário de Estado, um padeiro que, por mera coincidência, era dirigente do PS liderado também por António Costa.
Não bastando as notícias do Freeport, já em Setembro de 2004 a então revista Focus fazia capa com «a vida secreta de José Sócrates: Mora num prédio de luxo, faz vida de rico e declara, como único rendimento, o seu ordenado de deputado.» Em Julho de 2009, António Costa declarava que José Sócrates era «um grande líder e um grande primeiro-ministro». Dez anos depois, em Julho de 2019, António Costa, talvez por nunca ter lido notícias até à detenção de Sócrates, em 2014, declarava que nunca teve «nenhum sinal que levantasse a menor suspeita sobre o seu comportamento» e que só começou a ter essas suspeitas quando «começaram a haver [sic] notícias sobre essas matérias».
Curiosamente, também no mesmo ano de 2019 o jornal espanhol ABC escrevia que Carlos César, presidente do PS, de que António Costa é secretário-geral, batia «todos os recordes de nepotismo», um homem que tinha grande parte da família directa colocada em lugares do Estado.
Na mesma altura em que António Costa, no programa Circulatura do Quadrado, na então TVI24, declarava que só tinha lido notícias sobre os casos de corrupção que envolviam Sócrates em 2014, afirmava também que «não tolero de forma alguma qualquer forma de corrupção. Acho que é degradante para a democracia e tem de ser exterminada. Não consigo conviver com quem tenha praticado actos de corrupção». Como tem tão pouca tolerância para a falcatrua, nomeou para seu secretário de Estado Adjunto um arguido em processos de alegados ilícitos económico-financeiros, Miguel Alves, entretanto demitido depois de semanas de pressão mediática.
Enfim, a lista é interminável e nem sequer entrámos a sério nisto.
No passado fim-de-semana, António Costa escreveu um texto aqui no Observador, afirmando que não desvaloriza a corrupção e que o tem «demonstrado ao longo da [sua] vida política, sem retórica e com acção». No texto, Costa pretende demonstrar que não desvaloriza a corrupção através da transcrição de um excerto de uma entrevista onde se demonstra que ele próprio desvalorizou as perguntas que lhe foram feitas sobre um outro caso de corrupção de um membro do Governo. É comovente. Sobre a sua relação com actos de corrupção parece-me que estamos esclarecidos. Sucede o mesmo quanto à forma como António Costa tem por hábito lidar com as instituições da democracia, com a separação de poderes ou a dignidade da vida pública.
Mas talvez mais relevante seja um outro detalhe que o artigo revela. Ali António Costa menciona, para justificar o seu árduo trabalho no combate à corrupção, «a profunda reforma legislativa que produzi como ministro da Justiça, as medidas de transparência que introduzi na gestão municipal e o actual reforço sem precedentes dos meios de combate à corrupção por parte da Polícia Judiciária».
Num país que tivesse alguma cultura de prestação de contas, a esta hora estaríamos todos a perguntar ao primeiro-ministro que resultados práticos teve a «profunda reforma legislativa que produziu»; queríamos saber em que grau a Câmara Municipal de Lisboa é hoje mais transparente, mais desburocratizada, mais ágil e menos propensa a casos de corrupção graças às medidas que António Costa lá introduziu; ou em que termos se aumentou a celeridade das investigações e dos processos e se aumentou a qualidade da investigação graças ao dinheiro despejado no sistema por si enaltecido.
Como nós nos regemos mais por intenções do que por resultados, como temos a memória histórica de uma amiba e como somos sempre mais exigentes com os líderes de outros países do que com os nossos, António Costa teve a distinta lata de escrever o que escreveu. Assim, sem se rir, sem um mínimo de pudor, possivelmente com aquele famoso sorriso de cínico politicamente inimputável, beneficiando mesmo de toda uma pátria, do povo às elites, que tem e vende esta pantomima política como o maior talento que o país pariu desde o ano da graça de 1143. Costa só não faz do país parvo porque, graças a Deus, para isso não precisamos de ajuda.