Chamemos-lhe Zé. Levanta-se cedo e começa a pagar taxas e impostos de imediato. Quando acende a luz, quando toma banho, quando toma o pequeno-almoço, lá seguem pequenas quantias de IVA, contribuição audiovisual (mesmo sem ligar a televisão) e taxas de saneamento, taxas de resíduos e «taxas adicionais», assim descritas na factura mensal, sem que saiba em concreto o que são. Se tiver o azar de viver longe do sítio onde trabalha, não lhe resta grande alternativa a ter de usar o carro. Comprou-o e pagou imposto de selo. Para ter direito a circular paga imposto único de circulação. Para o fazer andar paga imposto sobre produtos petrolíferos. Por azar dos Távoras, a estrada por onde segue é um campo minado. Se estragar o carro e o levar ao mecânico, paga IVA. Se preferir a auto-estrada, paga a portagem.

Lá segue a sua parcela de rendimento para o Estado, a título de IRS, e para a Segurança Social. Se a empresa onde trabalha tem lucro, paga IRC. Tendo o maior azar de ter lucros tributáveis acima de 1,5 milhões de euros, lá pagará a derrama estadual. Eventualmente, a derrama municipal e mais uma série de tributações autónomas. Seguem quantias obrigatórias para a Segurança Social e para o Fundo de Compensação do Trabalho.

Se for proprietário de uma casa, pagou imposto de selo e IMT para a comprar. Paga IMI para a ter. Se a vender, pagará mais valias em sede de IRS. Se pediu financiamento bancário, ainda pagou mais de imposto de selo sobre o financiamento. Pagou os registos. Se quiser uma certidão actualizada da sua casa paga. Se quiser fazer obras, paga IVA. Se a quiser arrendar, paga IRS sobre os valores das rendas recebidos.

Se tiver um salário baixo, nas televisões ouvirá políticos e comentadores invocar que o Zé não paga IRS. Mas o Zé sente, de alguma maneira, que contribui para o funcionamento do Estado, já que paga impostos desde que acorda até que se deita, paga para comprar, paga para ter e paga para vender, paga para trabalhar, paga para não trabalhar, paga, simplesmente. Só que se o Zé precisar de um licenciamento municipal, espera anos por ele. Se precisar de resolver um problema num tribunal, espera anos por uma decisão. E, provavelmente, ainda fica surpreendido porque em várias situações, caso o tribunal lhe dê razão, tem ainda de intentar nova acção, dessa vez executiva, para que possa ver concretizada a sua pretensão ou o seu direito. Muitas vezes já não chega a tempo de ver reparado o prejuízo. Se tiver a Autoridade Tributária a exigir-lhe algum pagamento, sabe que deve pagar primeiro, para evitar penhoras, e reclamar depois – em processos judiciais que demoram não anos, mas décadas. Se ficar sem casa e precisar de habitação social, ela não existe ou existe em guetos de pobreza e “sem vagas”. Se precisar de transportes a funcionar, sem greves, sem falhas técnicas, com ligações funcionais e cómodas, não tem. Se precisar de uma creche, não há ou “não há vagas” (talvez o país se devesse chamar mesmo «Las Vagas» ou assim, como na canção dos GNR). Se precisar de um professor, não há. Se precisar de um médico, não há. Se quiser abrir uma empresa, desloca-se a um serviço «Empresa na Hora», onde lhe dizem que só daí a três meses. Se quiser utilizar um qualquer serviço do Estado, sabe que pode ter de se levantar de madrugada se quiser arriscar a sorte ou o azar de ser atendido. Ou faz 200 quilómetros para pedir novo Cartão do Cidadão (que também paga, já agora).

Por graça, ou nem tanto assim, todos os Zés deste país sabem que as coisas são quase sempre assim (talvez excepto nas Finanças, e apenas quando é para pagar, o único serviço público do país que é quase infalível), e queixam-se muito uns com os outros. Todos eles suportam individualmente o triste fado de um país inteiro onde todos os outros incumprem tudo, excepto eles próprios. Não apreciam políticos em geral, mas elegem sempre os mesmos. Também não gostam particularmente de capital, de gente rica e independente. Também sabem que o Estado, apesar de sugar impostos como um papa-formigas depois de um dia de jejum, não é capaz de prestar os serviços a que o próprio Estado se propõe prestar. É assim como que uma roleta russa de serviço público – às vezes tem-se sorte, as coisas correm bem e conta-se a toda a gente que as coisas não assim tão más. Que lá fora também não é tudo bom, mesmo que seja lá para fora que mandam os filhos assim que precisam de trabalhar. E contam, com indisfarçável orgulho, que foram a uma cidade a 200 quilómetros tirar o Cartão do Cidadão ou que tem o «filho lá fora» ou que foi para a porta do serviço público às três da manhã. Apreciam, com muito queixume mas com grande afecto, a estabilidade do sofrível. António Costa sabe isso perfeitamente, e nem tem grande pudor em acenar-lhes com o enjoativo argumento da estabilidade. E Marcelo resumiu tudo isto lindamente, ainda que seja uma pena tê-lo feito com gosto: we are bacalhau. Águas de bacalhau, acrescento eu. We are águas de bacalhau.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR