1. Um optimista por muito irritante que seja não pode deixar de se regozijar com os retratos que a imprensa internacional mais confiável tem actualmente tirado ao país: já se sabe que os portugueses sempre se comoveram por figurar nos jornais estrangeiros mesmo que por feitos inverificáveis e que quanto mais consolo externo recebem mais se auto- iludem : confundindo um país modesto, simpático, sem ambição conhecida, nem marca própria, com uma substantiva pátria europeia. (Não fora sobretudo o turismo e a imobiliária e onde estaríamos?) A verdade é que o olhar do Financial Times, para falar do última foto tirada, não é falso, é apenas incompleto: o “brilho” enlevado que ele aponta está embaciado e a foto, desfocada. Mas não sou eu que vou demover optimistas nem brigar com militantes do copo meio cheio, estragando-lhes a festa, com copos meios vazios.

Mais semestre, menos semestre, a Europa entorna-se, a economia esmorece e a conta chegará, mas entretanto até lá o país, não é verdade? está na moda. Viva a moda que ama Portugal mesmo que – é só um exemplo – os salários sejam inconcebivelmente baixos para tanto “sucesso” ou os filhos da classe média menos abonada da Europa não possam casar ou sair de casa dos pais por nunca ganharem o suficiente para tão trivial ambição. Se somarmos a trivialidade aos crónicos males que parecem inscritos no ADN português — crescimento anémico, importações a crescer, exportações a diminuir (o que logo resulta no tique irremovível do endividamento), o vagar exasperante do sector produtivo, o parco uso da iniciativa pessoal para competir… estamos quase conversados. E quem se admira? Não é o Estado a grande escolha? O Estado, grande imperador, com os seus funcionários, os eleitos quase exclusivos da governação?

Não sei se o Financial Times tirou algum retrato a esta parte da realidade mas qualquer “retrato” português digno desse nome também é feito destas ancestrais fragilidades tão mais frágeis quanto mais expostas a qualquer abanão vindo de fora. E se acrescentarmos que o chão que temos vindo a pisar desde que o país existe alterna a festa com a ruína e a ruína com a festa, eis a foto em tamanho natural. (pequeno entre-parêntesis não despiciendo: o texto do jornal britânico refere igualmente – como não podia deixar de ser – o trabalho político e a acção governativa de Passos Coelho na recuperação da credibilidade da nossa economia, mas para a grande plateia da esquerda essas linhas foram ignoradas – como não podia deixar de ser)

2. Apesar porém de meios vazios, os copos dos pessimistas como eu, já beberam muito. Nisso, estamos servidos. Foram quatro anos e peras, sempre abençoados — ignorando-se o critério — pelo sr. Presidente da República que nunca sabemos como pensa (e sobre o qual começa a haver gente séria sem saber o que pensar).

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Quatro anos de “ocupação” governamental mas esta, sim, criteriosa: António Costa ocupou o poder usando-o absolutamente; depois ocupou o Estado, fazendo dele uma propriedade privada; depois tratou dos funcionários públicos como filhos pródigos; e ao sexto dia, olhando para o espaço á sua direita e vendo-o vazio, ocupou o centro, ocupando-se dele a sério: as “contas certas” (mérito de Centeno) não podiam senão agradar à plateia mais conservadora do país; o fim da “austeridade” propagado à exaustão conseguiu a colossal proeza de iludir toda a gente. Na voragem dessa fé, o centro e a direita, achando-se libertos de chatices passadas, também aplaudiram e, pior, acreditaram; e o “rigor” – vem nos livros – veio securizar a metade não “costista” do país. Essa mesmíssima metade hoje travestizada num conjunto de sem-abrigo políticos, à mercê de quem lhes passe a mão pelo já escasso pêlo.

E last but not least, numa encenação digna de antologia, António Costa, com a solenidade emprestada das grandes ocasiões, permitiu-se a estocada final da “autoridade” e da “ordem.”

Como a direita gosta. E não importa que o Governo tenha interferido num conflito laboral e aberto irreversíveis precedentes: não estava ali o zelador-mor da “estabilidade” da pátria? Tanto bastou para que centro e direita – bem mais que a esquerda – se rendessem por antecipação à nefasta certeza (mas eles não percebem que é nefasta) da “maioria absoluta socialista”. É ouvi-los. Haverá maior auto-declaração de impotência? Maior demissão política, mais confrangedora vergonha?

O governo que recolha os louros. Sucede porém que cerzir este profundíssimo rasgão no tecido democrático irá demorar anos. Anos. Nenhuma democracia resiste a funcionar apenas só pela metade. E ainda menos que o combate político que deve alimentá-la se situe hoje apenas á esquerda de uma dessas metades. Temos visto muito, sim. Mais certamente do que aquilo que terá visto o Financial Times. Episódios fartos. Abuso: um Estado propriedade privada do poder, circuitos fechados entre favores político-partidários, negócios obscuros, alguma corrupção. Arrogância: famílias de sangue no topo do Executivo, nas lideranças parlamentares, nos organismos públicos. Injustiça: o maior arraso fiscal de que me lembro sem sombra de contrapartida por parte do Estado (recebido porém pelo país com aparente gentileza e silenciosas boas maneiras como podemos ver no espelho das sondagens). Seja como for é fácil imaginar como tudo isto se transformará em algo disforme – como naqueles espelhos das feiras populares — se os votos socialistas forem absolutos.

3. E já que aqui estamos: também não sei se a media internacional sabe ou não mas Portugal não pode ser descascado. De cada vez que as circunstancias o descascam, o resultado embaraça qualquer ser normalmente constituído. Assim avulso: afinal não foi só uma cratera que abriu, elas são imensas e em imensos lados, aparentemente prontas a engulir-nos; afinal umas golas distribuídas pelo Estado para proteger os “populares”(?) das chamas são elas próprias inflamáveis (enquanto o lucro da inédita encomenda já deve ir a caminho do bolso de um boy socialista) ; afinal, quando se descascou o pós-Pedrogão ainda não havia quase nada do prometido dois anos antes por autoridades com lágrimas nos olhos: nem a totalidade das casas reconstruídas, nem a totalidade das compensações financeiras, nem corruptos castigados; afinal os seguranças – públicos e privados – parece que não seguram: foi facílimo entrar num hotel de luxo do sul onde se hospedava a principal figura do Estado (mesmo que o PR se tenha permitido dispensar a GNR – com que critério? – teria sempre de haver “alguém” a tomar conta do sítio: não havia); afinal os departamentos do Estado supostos zelar pela integridade física, psicológica, afectiva de crianças em risco não foi capaz de salvar do inferno duas irmãs ainda por cima já “referenciadas” (pior é impossível); o caos, a inoperância, o desmazelo (não, não é só falta de dinheiro), dos hospitais; afinal as Forças Armadas, uma “instância” vital de protecção do país que se quer respeitável e respeitada, foram capazes, ao mais alto, médio e baixo nível da sua hierarquia, de produzir uma telenovela inominável chamada “Tancos”.

Vai aqui um misto de desmazelo, desorganização e desrespeito que também define o país e por isso aflige e envergonha. Parece que não a todos.

4. E é isto. (Ou não é isto? )