Joe Biden é o novo Presidente dos Estados Unidos da América. Contudo, estas eleições mostram uma América totalmente dividida e uma triste mas esmagadora constatação: Trump não é um epifenómeno.

Como explicar o facto de que após uma governação desastrosa com inúmeros escândalos, um processo de destituição e um flagelo sanitário com o espoletar da Covid-19, Trump viu o seu voto popular aumentar? À semelhança do ocorrido em 2016, a grande maioria dos comentadores políticos seguiram a linha do “voto de protesto contra o establishment”, a ignorância dos eleitores, o racismo, a xenofobia, entre outras caricaturas simplistas, como possíveis explicações. Agora, como antes, assume-se que estes eleitores “votam ao engano”. Na crónica do dia 3 de Novembro de 2020, João Miguel Tavares escreve no Público que, ”aquilo que se demonstra é que Donald Trump só foi eleito em 2016 por causa do ódio da classe “blue-collar a Hillary Clinton”. Isto não é verdade e só quando abandonarmos as categorias “prêt-a-penser” e olharmos atentamente para os detalhes, estaremos prontos para proteger as nossas democracias.

De facto, por muito duro que seja aceitar – para alguém que, como eu, partilha valores cosmopolitas em que a diversidade e a partilha de opiniões diferentes é lugar comum -, os eleitores de Trump podem realmente querer menor imigração, fronteiras mais fortes, menos benefícios estatais para os novos imigrantes e um maior poder para o Estado-Nação. Quando oito em dez eleitores de Trump apoiaram a ideia de construir um muro na fronteira com o México1, é difícil aceitar que eles não sabiam no que estavam a votar, ou que eles estavam apenas a protestar contra o sistema. As eleições de 2020 tornaram isso ainda mais claro: o voto é em Trump e no que ele representa. Isto é desejável? Certamente, não. Mas não é possível combater estas ideias ignorando-as ou, simplesmente, categorizando os apoiantes de Trump como “basket of deplorables…racist, sexist, homophobic, xenophobic, Islamophobic – you name it“, como o fez Hillary Clinton em 2016. Só compreendendo as suas origens e percebendo o porquê destas reivindicações, poderemos responder com melhores soluções e recuperar a saúde das nossas democracias. A questão chave é, ou deveria ser: porque votam eles assim?

Há uma imensa literatura sobre o tema: “cultural backlash“, seguindo a tese de Pippa Norris e Ronald Inglehart2, ou económico? Se económico, causado pelos excessos da globalização, geradora de extrema desigualdade (na ótica de Dani Rodrik3, Piketty4 e Branko Milanovic5), ou ainda fruto da inovação tecnológica6?

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De facto, não parece haver dúvidas que, independentemente dos fatores culturais, a forma como temos gerido a globalização é o principal catalisador da corrente populista que varre as democracias ocidentais. Estes eleitores votam contra uma globalização que não aprovam. Dani Rodrik, um eminente economista dedicado às questões do comércio internacional, vem defendendo desde 1997, no seu livro Has Globalization Gone too far? – onde alertava para os excessos da globalização, que originam “winners” e “losers” – a necessidade de implementação de medidas de compensação. Acemoglu7 estima que, entre 1999 e 2011, entre 2 a 2,4 milhões de empregos foram “perdidos para a China”. Além disso, o impacto da deslocalização industrial para a China (e consequente desemprego) contribuiu para um brutal aumento do uso de ópio, problemas mentais, divórcios e “deaths of despair”, como documenta Angus Deaton8. Assim, não é surpreendente que uma grande parte dos votos em Trump, em 2016, tenha vindo precisamente das zonas mais afetadas por esse choque, como o Ohio e o Michigan, por exemplo.

Adicionalmente, a globalização fez disparar a desigualdade nas economias desenvolvidas para níveis próximos dos da Primeira Guerra Mundial9, com a classe média dos países desenvolvidos a não adquirir praticamente nenhum ganho decorrente da globalização (como tão bem comprova o “Elephant Chart” de Branko Milanovic). Como refere Piketty, “não poderemos continuar com esta globalização sem fazer mudanças”.

Infelizmente, o grande bloqueador do debate sobre a globalização prende-se com o facto de que qualquer tentativa de apontar as suas falhas é entendida como uma apologia ao protecionismo e a um mundo de conflitos comerciais. Na verdade, é o oposto. Se queremos continuar a beneficiar de todos os ganhos decorrentes da globalização (e que são tantos!), precisamos, urgentemente, de proceder à sua reforma para que todos possam beneficiar dela.

Retomando a questão inicial: o que leva estas pessoas a votar em Trump? O sentimento de terem sido deixadas para trás, por uma economia onde não estão incluídas e por uma classe política que não considera as suas preocupações.

Joe Biden e os democratas parecem ter percebido isso, fazendo uma campanha mais suave contra os eleitores de Trump e com um discurso pós-eleições onde referem que “we may be opponents, but we’re not enemies. We’re Americans”.

Só este pode ser o caminho. Se queremos manter as nossas democracias e derrotar os “Trump pelo mundo fora” é necessário criar uma economia global onde todos se sintam estimados e ouvidos, com refere Michael Sandel10. Os votantes de Trump estão a falar de novo: vamos ouvi-los!

(1) National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy, Matthew Goodwin, 2018
(2) Cultural Backlash: Trump, Brexit, and Authoritarian Populism, Pippa Norris e Ronald Inglehart, 2019
(3) Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy, Dani Rodrik, 2017; Why does globalization fuel populism? Economics, culture, and the rise of right-wing populism, Dani Rodrik, 2020
(4, 9) Capital and ideology, Thomas Piketty, 2020
(5) Capitalism, alone: The future of the system that rules the world, Branko Milanovic, 2019
(6) The Economics of Belonging: A Radical Plan to Win Back the Left Behind and Achieve Prosperity for All, Martin Sandbu, 2020
(7) Import Competition and the Great US Employment Sag of the 2000s, Acemoglu et al., 2016
(8) Deaths of Despair and the Future of Capitalism, Angus Deaton e Anne Case, 2020
(10) The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?, Michael Sandel, 2020